Pensar em Saraceni é pensar em um cantinho isolado dentro do quarto do cinema brasileiro. Há alguns anos, conheci-o quando vi pela primeira vez Arraial do Cabo, Porto das Caixas e A Casa Assassinada. O cinema que apareceu ali guardou um espaço na memória: um cinema de contemplação e também da literatura, vindo de um mundo onde as aparências das coisas ainda são muito brutas e se pesam pela balança do tempo. Difícil dizer alguma característica que particularize o cinema de Saraceni e o faça torná-lo indefectivelmente “seu” (e é certo que este autorismo de obsessões temáticas, no fim das contas, nunca serviu para nada); ao contrário, cada filme dele é capaz de trazer suas próprias tensões, forças e movimentos. O que talvez se possa sugerir como a qualidade que atravessa o seu cinema não é algo facilmente verificável (é algo que se saboreia, não se comprova): trata-se de um olhar solitário e paciente que vê em cada pessoa, em cada local, em cada coisa, a grandeza de um mundo vasto e desolador. Ele quer poder encontrar na unidade a evidência e a sensação de totalidade.
Vejam a beleza de Arraial do Cabo, por exemplo: essa espécie de olhar de cientista, pelo seu rigor, sua concentração, seu enfoque no objeto, extraindo a poesia própria do real em cada uma de suas coisas, em seus aspectos mais unitários, mais individuais. Ou então podemos pegar O Desafio: dos seus personagens, cada qual com seus próprios traços firmes (o militante desiludido; o empresário direitista; o jornalista cínico; a mulher “antonionamente” confusa etc.), não se chega a uma fábula simbólica, mitológica, épica, como quem vai do corpo ao signo e do real ao drama – seu trajeto é o inverso, e encontra no que existe de mais abstrato (as falas bastante literais dos personagens; o país imaginário ao qual pertencem, pelo qual lutam, reclamam) uma aridez particular, um vazio que separa o homem do mundo, e seus sonhos de suas realizações. O fato de se repetir constantemente que Saraceni “inaugura”, digamos assim, uma segunda fase do Cinema Novo é porque isso caracteriza algo bastante particular do realizador: os sonhos, as ilusões, o passado, o que existe de mais íntimo ou mais forte dos personagens, só pode ser medido em acordo com uma paisagem indiferente, desoladora e (com um certo exagero) opressora. Assim, Saraceni pressentiu que, no interior da efervescência cinemanovista, havia mais a fundo uma realidade mais anterior, mais estagnada, talvez mais cinzenta, com a qual nada se podia dizer, com a qual nada havia a se transformar...
Os militantes desiludidos de O Desafio repetem com alguma frequência que estender suas mensagens políticas em um livro ou em qualquer tipo de prática artística não era solução para aquela situação confinante, pois ela carregaria muito de uma vaidade individual do gênio artístico e ainda ficaria restrita aos nichos “burgueses”. Saraceni, ao tê-las exposto, também deve ter passado por essas dúvidas, até descobrir que poderia não “comunicar” nada, e nem mesmo a crise das utopias e dos ideais é o seu tema – o seu tema mais profundo é o de nada comunicar, o de viver no presente a todo custo, um presente que não “fala”, mas que está aí. A Maria Betânia está aí. A fábrica e os trabalhadores, os homens e os seus sonhos, o casal e suas incompreensões, tudo está aí. Eis “o desafio”: o desafio do presente, este “realismo” de herança italiana da qual o cineasta não soube desvencilhar. Neste sentido, o fim, em que o personagem se distancia da câmera, não constitui uma fuga, uma tentativa de escape da realidade no momento em que se adquire consciência de sua grandeza e dimensão (como podemos falar, por exemplo, de Deus e o Diabo...), mas sim por ter-se finalmente colado ao fundo, aceito a entrega, a comunhão com a realidade.
Se em O Desafio, Saraceni está à procura de um painel plano e transparente no qual seus atores se incrustam, em A Casa Assassinada, ao contrário, há um mundo mais estilhaçado, mais enigmático, sombrio, em que os atores são mais proeminentes. É aqui que melhor se pode ressaltar outra característica marcante do cineasta: a sua atenção, a sua fé nos atores. São eles que dão todo o peso, toda presença, toda fascinação à cena, ao mundo a nossa frente. Eles representam, e encarnam, o desequilíbrio do mundo. Como monstros errantes, fantasmagóricos, eles estão sempre deslocados, sempre rejeitados – da família, da sociedade; até mesmo o próprio drama que sofrem está também deslocado do corpo que o carrega. De fato, isso já estava em Porto das Caixas e O Desafio (pensemos como os diálogos já trazem muito esta sensibilidade de Saraceni para um personagem em deslocamento com o seu próprio corpo e o meio ao redor que vai receber esta fala), mas parece que em A Casa Assassinada é tudo o que sobra: nenhum momento de equilíbrio, nenhum painel ou plano geral, nenhuma oportunidade de “colagem” a um fundo que se mantém sempre imperturbável (a floresta densa, as paredes e a decoração da casa). Há somente essas individualidades, suas instabilidades.
Se, por um lado, Saraceni não filma, evidentemente, “instituições” – a família latifundiária decadente; o Brasil “profundo” do interior, reminiscência das épocas coloniais –, por outro, precisa delas para reforçar seus temas, para dimensionar a força e a instabilidade de seus personagens. Da mesma forma com a abstração da narrativa, a trilha sonora, as intrigas, que, tratando-as como um material de superfície, naquilo que está em primeiro plano, lhe permitem descer a raízes mais profundas do mundo para trazê-las à tona. Desta forma, o passado (da narrativa, dos personagens, mas também um passado mais imaginário do país, ou até mesmo um passado do mundo através da figura da natureza e da floresta densa e ainda intocada) é esse instrumento que manifesta no presente uma dimensão até então desconhecida e imprevista.
É possível sintetizar dizendo que Saraceni procura confrontar e conciliar dois registros, por assim dizer, da realidade: um objetivo e um subjetivo. Objetivo pela paisagem ao fundo, o da sociedade ou da natureza, e a maneira como os atores habitam e se destacam nestes espaços. Também neste registro, essa qualidade do presente, do que é mais imediatamente visível, deflagrado, exposto, vivido. Já o registro subjetivo é aquele do olhar paciente, do sentir o tempo passando, da câmera móvel de O Desafio passeando pelo espaço como se pudesse desfazê-lo ou torná-lo líquido, do passado evocado pelos personagens, e das forças de tensão e desejo. O cotidiano e o sonho (O Desafio), a narrativa e o seu caos (A Casa Assassinada) etc. Vale dizer que sou eu quem divide e diferencia, não Saraceni. Isso porque acredito que não haja nada em sua obra que leve à razão, ao cálculo, à consciência. O que existe de mais estimulante e forte em seu cinema é mais intuito e próximo, por vezes, do irracional – e, ainda assim, ele o alcança sendo, ao mesmo tempo, um cineasta discreto, manso, sereno.
João Gabriel Paixão
Janeiro de 2012
|