Não é simplesmente uma questão de imagem. Antes seria, sobretudo, uma motivação musical. Bem que poderia ter sido transfigurar a realidade e tudo o que vemos por meio da trilha de Antonio Carlos Jobim o que levou Paulo César Saraceni a filmar Porto das Caixas. Do contrário, ainda hoje, pareceria extravagante a ideia de realizar uma adaptação, por mais livre que seja, do livro clássico de James M. Cain, O carteiro sempre bate duas vezes. A obra literária já havia rendido, pelo menos, uma versão relevante para o cinema, O Destino bate à sua porta (1946), de Tay Garnett, estrelada por John Garfield e Lana Turner; e, no contexto do cinema (novo) brasileiro dos anos 1960, seria das matrizes mais impensadas – para não dizer “proibida” pela patrulha ideológica da época. É claro que a transposição para a zona ferroviária do interior fluminense; com sua paisagem árida e humanamente desoladora; o viés social e até feminista; tudo isso impresso por Saraceni à história justificariam, conforme um projeto de cinema em construção, a filmagem.
Reconhecemos também a força expressiva dessa figura trágica imantada por Irma Álvares, uma mulher que trai, seduz e mata para fugir ao determinismo ambiental em que está enredada – e temos a impressão de que sua dor e desespero ultrapassam o mero retrato social, ou seja, não é estritamente a penúria em que vive o que lhe impulsiona a fazer de tudo para escapar dali. Nada há na personagem de Alvarez da vamp ou femme fatale, como poderiam sugerir suas origens literárias e até cinematográficas. Dela não sentimos pena, nem antipatia, nós a entendemos. Saraceni não faz juízo de valor, muito menos é indiferente ou mira a indiferença. O filme não comporta teses e o próprio ponto de vista do cineasta diante do que filma parece fugidio, em formação. Ou melhor, permeado pelo espírito de quem quer ver e descobrir para além das planificações e conceitos prévios.
E neste sentido, voltemos à musica. A composição de Jobim reconfigura aquele espaço, nos guia quando o negrume cobre o rumo dos trilhos e, desconcertados, já não sabemos para onde ir com nosso olhar (se para o entrecho noir ou para o puro documentário), preenche aquela casa vazia, logo na abertura do filme, modula a melancolia e solidão que presenciamos à beira da ferrovia, e realça a sensação de imobilidade dos personagens centrais, não importando quantas viagens façam (a trabalho) ou sonhem fazer (por dilação).
Porto das Caixas prenuncia a trajetória, ora errática, ora oficiosa – a láurea de precursor do Cinema Novo que sempre coube a Saraceni. De todos os caminhos possíveis, escolheu os menos heróicos. Sem revolução, utopia ou alegorias. Só o cinema. Musicalmente, o cinema. É o cineasta mais só do que viria a se tornar o movimento cinemanovista. A última imagem deste filme, não deixa dúvidas. Todos pagamos um preço por aquilo que nos é irremediável ser.
Adolfo Gomes
Janeiro de 2012
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