Inútil Paisagem
Hoje, todos ameaçam ser celebridade. Do cineasta novinho ao estuprador planejado. O pseudo-jornalista que se cuide. Se não entender, estará dando atestado de burrice.
Contra a corrente da estupidez, um filme como O gerente reencontra a liberdade. Talvez por ter vivido tanto tempo nas trevas, desde antes de Porto das Caixas. O gerente é o típico filme inteligente que não interessa ao Brasil. Não porque se leve a sério. Ou porque se ache genial. Ou porque precise de padrinhos. O gerente é uma obra-prima. Tentarei explicitar minhas caóticas impressões.
Em primeiro lugar, a violência: O gerente violenta o cinema constantemente. A começar pelo movimento de câmera.
Há muito tempo que o zoom foi aposentado. Um pouco por preconceito (o zoom é como aquele cara que tomou um ácido e nunca mais voltou); um pouco porque ninguém soube mais como usar o zoom depois de Rossellini. Digo isso em termos de cinema, claro, porque no dia-a-dia, o zoom é o movimento mais corriqueiro que fazemos, com ou sem celular.
Por outro lado, ninguém mais soube usar o travelling. Em parte porque ninguém mais sabe o que significa “cinema clássico-narrativo”, em parte porque ninguém soube ver bem Rossellini, que usava o travelling como ninguém.
Uma das soluções atuais recorrentes é a câmera fixa, bem como certos diálogos não-naturalistas. Pena que tudo isso se defenda na estática inócua da higienização estética. Não é jogo de palavras, trata-se mesmo de inocuidade: em A alegria (Marina Meliande e Felipe Bragança, 2011), por exemplo, que tem o mérito de ser um dos poucos filmes recentes a romper de forma radical com a tradição cinemanovista, estranhamente não é óbvio que levar tiro cause dor; por outro lado, nesse mesmo filme, o Largo do Machado aparece literalmente ensaboado pros papaizinhos de consciência dolorida se esticarem à vontade.
Em O gerente, a risada de pomba-gira desarticula tudo.
No filme, os zooms e certos travellings causam a desconcertante impressão de que não foram cortados. E por que não foram cortados? Porque precisavam estar ali. O gerente tem o mérito de resgatar, no cinema feito no Brasil, o prazer da contemplação de um movimento de câmera. Nem que para isso fosse necessário evidenciar que aquele movimento era excessivo. Mas o que não é excessivo em O gerente?
Em grande parte do cinema que se faz hoje no Brasil, o preço de uma pretensa coerência de estilo é a total assepsia. Felizmente isso não ocorre neste filme. Não por acaso, pula-se da crença na montagem como o “específico fílmico” para uma espécie de “montagem proibida” baziniana filtrada pelo cinema direto à brasileira. Tais escolhas promovem não apenas uma espécie de inventário de possibilidades poéticas como documentam as transformações pelas quais o cinema brasileiro dos anos 1950-60 passou – tematizando de quebra o próprio tempo histórico tratado no filme.
Um exemplo a ilustrar o primeiro caso (a montagem criadora de uma geografia e de um tempo próprios) é a cena em que Djin Sganzerla e Ney Latorraca esperam a condução na escadaria da Igreja da Glória, no Largo do Machado, e em seguida sobem no bondinho, mas em Santa Teresa. Já na seqüência do baile, introduzida pela narradora (Joanna Fomm), ela mesma um personagem que vive na fronteira da ficção e do documentário, vemos Ney Latorraca e Letícia Spiller dançando enquanto conversam. Na trilha sonora, um conjunto toca um choro. A câmera, sem cortes, sai do casal e desliza até o conjunto de músicos, que executa o número ao vivo, gravado em som direto (a certa altura o microfone entra em quadro), para depois retornar ao casal.
Tudo é pecado e virtude em O gerente, cuja lógica é, aliás, a do crime e da punição. Nada diferente do que já se encontra desde Porto das Caixas.
O amor, por exemplo, tema de todos os filmes de Paulo Cézar Saraceni. O gerente é talvez o filme em que o diretor melhor tenha expressado o que é o amor. Em primeiro lugar, dom. Depois, poder. Em seguida, fracasso. E por fim, expectativa.
Discordo de quem vê em O gerente uma primeira parte “comédia” e uma segunda parte “terror”. Não existe isso. O filme não se classifica nem em comédia nem em terror. Pode-se até dizer que é um documentário ficcional ou vice-versa, mas não um filme bipartido. Há uma inegável (e perturbadora) continuidade entre a descoberta do amor em Samuel (Ney Latorraca) e sua maldição.
Maldito: o termo já fora aplicado a Saraceni pelo jovem Sganzerla (a propósito de O desafio, 1965), muito antes de o segundo passar a ser, ele próprio, apelidado de udigrudi pelos cinemanovistas. Mas um termo como esse – maldito – poderia dar conta de um cineasta como Saraceni?
O gerente foi produzido pela Petrobras, que inclusive é tematizada – e publicizada de forma patética, diga-se de passagem – pelo filme, que se passa nos anos 1950. Samuel priva com a companhia de celebridades do mundo da política e da cultura. Tal como A música segundo Tom Jobim (Nelson Pereira dos Santos, 2012), O gerente fala de uma idéia de país que não existe mais. O que não significa que esses dois filmes estejam defasados ou nostálgicos, pelo contrário.
O gerente é um dos mais desvairados filmes sobre o amor e sobre o cinema brasileiro. Belíssima homenagem a Mário Carneiro: estão ali Gordos e magros (1976) e o projeto de Bombom da sedução, que se passava no jóquei. Aliás, o único filme que dialoga com O gerente é Gordos e magros, que na época foi comparado a Buñuel.
Mas o que importa é que um filme foi feito e esse filme combina noite e dia em um só genial movimento de câmera. Pré-final: Ana Maria Nascimento e Silva chega bêbada carregada por Ney Latorraca, em um táxi banhado pela luz amarelada e marrom de um fundo escuro de noite. Ela vai rindo, angustiada, nostalgia de lobisomem. A câmera acompanha até um certo ponto, depois sobe: em cima do telhado, já vemos o céu azul. Corta para Ney, dentro de casa, prostrado em um sofá: e agora José?
O plano final é longo: Ney Latorraca abraça Ana Maria. Suas mãos até tremem. Ele mantêm os olhos fechados. Ela também fecha os olhos. Sentem. Respiram. Ela suspira. Nada é seguro. Até onde vai a cena? Ele passa a mão nela. Suspiros. Ela geme. Uma voz – a voz de Saraceni – surge do fundo, abafada e quase incompreensível: “Vai, Ney, pra cena final!” Ney se recompõe, passa a mão nos cabelos. Os olhos ainda estão fechados. Respiração pesada. Ele pega a mão de Ana Maria. Leve balé. Suspende a mão até a altura da boca. Ela se inclina, prazerosamente. À vontade. Está entregue. Ele suspende o gesto do beijo. Os atores se fixam, paralisam-se enquanto o sangue corre nas veias e o coração pulsa. O risco da vida e da morte.
O gerente é um gesto de amor à vida.
Luís Alberto Rocha Melo
Rio, 29 jan 2012
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