Há uma certa ironia lacônica no final de Lola que não se sabe se é intencional ou resultado de um mal-entendido cultural: no Brasil, como em boa parte dos países do mundo, um processo envolvendo um homicídio jamais poderia ser encerrado com um acordo amigável entre as partes, já que se trata de uma ação penal movida pelo próprio Estado. Não temos como saber se o acordo selado no fim do filme tem plausibilidade real ou se se trata de uma licença poética da parte do diretor – a última cena coroa uma saga em que a pauperização se troca o tempo todo com a dignidade e a moralidade dos personagens. Se as duas famílias saem satisfeitas do acordo, não há, no entanto, como afastar um incômodo com a situação: num cenário de pauperização extrema como o mostrado pelo filme, a vida também se torna uma mercadoria, uma moeda de troca.
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Lola tem tudo para ser visto como um típico monstrinho do world cinema contemporâneo. Porém, diferentemente de uma certa produção “mundo-cão” habitual nos festivais, que encontrou sua expressão mais pura num filme como 4 meses, 3 semanas e 2 dias, não há aqui traços de uma arquitetura depurada oprimindo os personagens em um ambiente claustrofóbico. Tampouco há um senso de fatalidade na narrativa conduzindo-a para um futuro trágico anunciado. O que há de melhor no filme de Brillante Mendoza é justamente a sua vontade de ver, o interesse bruto que move seu olhar. Se há alguma culpa, ela é expurgada na cena em que dois jovens filmam extasiados uma paisagem de miséria da janela de um trem. A cena é uma nota de pé de página que diz algo como “Eu entendo os problemas, os riscos, as questões. Vamos em frente.”
Mendoza não quer, com Lola, inspirar no ar um certo clima “barra pesada”. Ele quer, estritamente, filmar a pobreza. Há uma diferença radical aí em relação aos projetos estéticos de certos cinemas contemporâneos. O plano-sequência aqui é menos um dispositivo do que um método natural e empírico de registro. Os enquadramentos são ora simplesmente funcionais, ora horrendos: uma câmera desajeitada, que nunca está em busca do ângulo perfeito, confortável. A câmera tremida não pode ser considerada como um cacoete na medida em que ela sequer chega a compor propriamente um estilo. Se há um “realismo” a ser discutido, ele deriva mais dos signos megalômanos da pobreza que de estratégias de composição e registro, reduzidas a uma operacionalidade mínima. Não há estrutura, estilo, nem clima: a ficção é encenada a partir de um desejo descarado por ver e mostrar. Repreender a “gratuidade” num filme como Lola é, naturalmente, minar seu potencial.
Não deixa de ser louvável também que Brillante Mendoza consiga fazer um filme sobre duas avós sem incorrer no sentimentalismo barato. Há, nesse sentido, uma boa maturidade de roteiro. Ser “velho”, para o filme, não torna nada mais ou menos dramático, apenas dificulta fisicamente a epopeia (subir escadas, locomover-se, a contenção urinária). Ser “avó” quer dizer somente fazer todo o possível para tirar o neto de uma situação – enquanto, curiosamente, o neto não parece estar exatamente insatisfeito na cadeia. Não há tempo para sentimentalismo, já que as personagens precisam constantemente driblar a burocracia e a falta de dinheiro para realizarem o enterro e o acordo.
Essa rejeição ao sentimentalismo fica claro logo na primeira sequência, quando uma delas tenta acender uma vela no local onde o filho morreu no dia anterior. Em vez de se ater a uma relação sentimental entre a personagem e o lugar, Mendoza se ocupa do verdadeiro caos envolvendo a chuva, o vento, a sujeira, um grupo de crianças ao lado. A avó, acompanhada pelo neto, leva pelo menos três minutos entre segurar precariamente o guarda-chuva, riscar os fósforos e acender a vela – não há pranto ou entrega sentimental possível diante de obstáculos tão ríspidos, e, depois, tudo o que a personagem pode querer é sair correndo dali, carregando seu constrangimento e sua dor.
Mendoza se equilibra em um olhar que não é nem sentimental nem perverso. Também não é o caso de dizer que este é um filme que “se exime”, pelo contrário: há um olhar muito duro da câmera para com aquilo que registra – o mote deste olhar, pode-se dizer, é o dinheiro, como fica relativamente claro no fim. Mendoza consegue se sobressair no capcioso terreno do cinema contemporâneo, dialogando com um repertório de estilos e imagens que não raro levam caminhos equivocados, porém nos entregando um filme bastante consistente e centrado. Não se trata de enxergar qualquer tipo de “vanguarda” aqui, mas de reconhecê-lo como um belo filme de ficção.
Calac Nogueira
Janeiro
de 2012 |