DOIS FILMES políticos E A LOUCURA DE ALMAYER (Festival do rio 2011)

Estratégias políticas

Dois filmes, uma mesma imagem: imigrantes africanos ilegais aportam na Europa em praias do mar Mediterrâneo – desesperados, famintos, nadando.

Em Terraferma (2011), Emanuele Crialese opta por planos frontais. Na primeira cena em que os imigrantes aparecem, Philippo e seu avô estão pescando no barco quando avistam um bote com dezenas deles. Na segunda cena, Philippo levara Maura para um passeio de barco à noite e os dois se deparam com uma legião de homens negros nadando em sua direção – desta vez, a velocidade com que se aproximam causa terror. Nos dois casos, o plano ponto-de-vista surge como uma imagem descolada da cena, criando um efeito-surpresa nos personagens e no espectador. Em ambos os planos, Crialese recorre a enquadramentos frontais e abertos, transformando os imigrantes numa massa humana cenicamente desfigurada. O que são eles? De onde saíram?

Nicolas Provost, em O invasor (The Invader, 2011), escolhe o bom e velho plano-sequência. Numa praia de nudismo, a loura nua partilha o mesmo plano do negro recém-chegado do mar. Os dois são obrigados a reagir, ainda que de maneira inconclusiva – fica no ar apenas um misto de surpresa, lascívia e horror mútuos. Curiosamente, a personagem da loura não voltará ao filme. Ela é uma imagem de beleza etérea, um corpo-modelo feminino, uma vagina europeia simbólica. O prólogo descolado da narrativa faz todo sentido, já que o filme de Provost é todo feito de jogos com a imagem e os corpos.  

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O efeito-surpresa e a frontalidade dos planos de Terraferma parecem sublinhar a ignorância  velada do filme diante de seu assunto. O que são eles? O que é essa massa de pessoas surgidas do nada? De onde saíram? Até aquele segundo, eles não existiam (dentro da cena), mas agora estão aqui.


Esses imigrantes brotaram magicamente do mar, logo precisamos ajudá-los. Crialese divide o mundo entre bons e maus: a polícia, a lei e os capitalistas de um lado, a comunidade e as "leis do mar" de outro. Ele parece querer justificar sua ignorância velada através do ponto-de-vista (meus personagens não conhecem nada do mundo, logo meu filme também não). Secretamente, porém, o filme maquina o dramalhão barato: ele compra a nossa complacência com seu humanismo. Alguns planos fazem os espectadores de festivais rirem dos turistas que frequentam aquele balneário de verão – obviamente, esses mesmos espectadores da classe média, sob nenhuma hipótese, deixarão de tirar férias e viajar para lugares semelhantes no verão. Terraferma é leve, engajado e inefetivo.

O dilema que Crialese dá a seus personagens é dilema burguês diante da esmola: ajudar ou não ajudar? Politicamente, o filme também tem o valor de uma esmola: muito discurso, muita leitura (rasa) e nenhuma crítica. Tudo interposto com "belos" planos purpurinando a narrativa mostrando que ali existe um diretor – para que os festivais continuem exibindo seus filmes de "temas urgentes".

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É possível um filme sobre um imigrante africano sob o ponto-de-vista da cidade que o recebe? Saindo de O invasor, sabemos alguma coisa do que se passa na cabeça do protagonista Amadou, mesmo que o filme guarde um bom distanciamento de seu corpo robusto e impenetrável. No entanto, sabemos ainda mais sobre o ambiente que o recebe. Basta observar um trecho do plano de abertura do filme (aqui). Essa imagens – o plano-sequência laborioso, chapado sob o pôr-do-sol alaranjado, a música, o corpo-modelo feminino – nos dizem muito mais sobre o olhar europeu, as imagens “belas” da publicidade e dos editoriais de moda, do que sobre Amadou, reduzido a um ponto de chegada. Será assim por todo o filme. Um digital sublime, gélido, azul, enquadrando ambientes igualmente gélidos e artificiais.

O invasor apresenta algumas inconsistências: Amadou sustenta sua farsa com Agnès por tempo demais. Os dois passam a noite juntos e ele, um imigrante ilegal, consegue por algumas boas horas se passar por um ricaço sem que ela desconfie. O que Nicolas Provost felizmente compreende é que não estamos atrás de um descritivismo sociológico minucioso e correto – diferentemente do que pensam praticamente todos os cineasta que filmam “temas sociais”. Queremos apenas uma imagem justa. Quando Amadou faz sexo com Agnès, ambos debruçados na vidraça de um arranha-céu, temos uma imagem justa. Uma imagem que poderia estar tanto na publicidade quanto num pornô (o filme retoma o discurso fetichista do plano de abertura). Aqui, Provost cria uma imagem que efetivamente diz algo sobre o mundo – uma imagem justa.

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A Loucura de Almayer
(La folie Almayer, 2011)

Além do próprio Provost, o último Festival do Rio apresentou outros estetas contemporâneos talentosos (penso sobretudo em Michelangelo Frammartino e Nicolas Winding Refn, cada qual com seu respectivo interesse). Ainda assim, o melhor filme do festival talvez tenha vindo justamente das mãos de uma veterana: Chantal Akerman. Sem responder à sensibilidade contemporânea das plateias antenadas (como Drive, possivelmente o filme mais autoconsciente que vimos em muito tempo), sendo, por isso mesmo, um dos eventos mais ignorados do festival, Akerman nos trouxe um filme que nos dá gosto de ver em sua radicalidade e seu rigor.

Como justificativa, bastaria descrever o último plano do filme, sem dúvida um dos mais bonitos do ano: por longos minutos, a câmera se aproxima lentamente do rosto de Stanislas Mehar quando este se dá conta de que perdeu tudo. Vamos do plano conjunto ao close up. Sentado em seu trono, o corpo imóvel e prostrado, com seu criado em pé ao fundo, ele é como um rei diante de seu reino imaginário destruído. Neste plano, cada mínimo elemento parece se esforçar criar a expressividade da cena: por um momento, a luz incide em seu rosto e reflete em seus cílios, denunciando um olhar vazio, oco, de alguém que teve seu mundo tragado pelas brechas da própria loucura.

Se este plano mais parece a obra-prima de um pintor, o vigor do filme é essencialmente cinematográfico. Um vigor que, no lugar de deixar em nossa mente belas imagens (como no caso dos "estetas"), nos atira em contato direto com a dureza da própria dramaturgia. Trata-se, então, de se observar tão somente as mudanças de luz, de pontos-de-vista, as palavras, o tempo. As cenas são blocos de duração de um mundo que se autoconsume. Uma vez que o rigor da câmera tragou todas as "belas imagens", nos deparamos apenas com um fluxo narrativo árido e desbotado. Como em A prisioneira, a câmera desbrava menos o "mundo" (o Oriente, a Malásia) do que a própria literatura, buscando uma dramaturgia "pura" baseada uma imagem táctil. "A psicologia não me interessa. Não fiz um filme psicológico, fiz um filme onírico com relações essenciais", afirmou Akerman. Se A Loucura de Almayer não chega ao nível de A prisioneira, a obra-prima da cineasta, sua beleza radical nos mostra ao menos uma diretora ainda em grande forma.

Calac Nogueira


 Janeiro de 2012