desassossego (filme das maravilhas) (1)
Helvécio Marins Jr, Clarissa Campolina, Carolina Durão, Andrea Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marina Meliande, Caetano Gotardo, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança, Karim Aïnouz. Brasil, 2011.

Desassossego (filme das maravilhas) não é o “blockbuster de aventuras e explosões do verão” que anuncia em seu prólogo – na verdade, uma das coisas mais curiosas do filme é justamente o fato de ele gastar bastante tempo se anunciando no lugar de simplesmente “ser”: este é provavelmente o destino inevitável de um filme-projeto onde o processo de feitura parece sempre assombrar o produto final, a unidade do filme acabado (2). Pois bem, se o filme surge como esse projeto coletivo aberto, dedicado à livre imagerie contemporânea, ele o faz, no entanto, guiado por um sentimento de nostalgia profunda – uma nostalgia pós-adolescente que se torna evidente na própria alusão a um “blockbuster florido de verão”. O cinema moderno está cheio de falsos testemunhos (3), mas não se trata tanto disso neste caso, pois, aqui, a nostalgia juvenil funciona criando um abismo entre o que o filme desejaria ser (um filme de aventuras) e aquilo que ele verdadeiramente é: um filme adolescente-experimental-brasileiro de imagens sujas, saturadas por uma febrilidade lúgubre e adoentada.

Desse abismo, Felipe Bragança e Marina Meliande fazem um típico filme-ressaca de imagens corroídas por um imaginário que pesa sobre os ombros (“O filme de ficção científica que nunca fizemos. O filme de amor que nunca fizemos.”). Os episódios assinados por diversos diretores funcionam como cápsulas, blocos heterogêneos banhados em um magma de nostalgia e poesia baratas (“que de tão ruim chega a ser bom”) e do fetichismo encarnado nos corpos adolescentes dos interstícios. Mas mesmo nos segmentos individuais há pouco frescor e arejamento: todos os filmes são abafados por procedimentos e iconografias que coagulam sobre as imagens – a exceção talvez seja aquele realizado por Caetano Gotardo, que, encaixado bem na metade da fita, funciona como um bom respiro dentro da euforia geral do filme.

É bom dizer que alguns “episódios” casam melhor com a proposta geral do filme que outros. Curiosamente, um dos que parece mais destoar é justamente aquele assinado por Marina Meliande (que também é a montadora do longa), que, se por um lado também coloca em cena uma certa nostalgia (“Nasci carioca, fui enganada”), por outro lado o faz de maneira tão límpida (imagens cristalinas da praia dialogam com imagens igualmente cristalinas de prédios, reduzidos à mera geometria de suas formas) que acaba se diferenciando, com seu raciocínio claro e liso, das imagens mais úmidas e abafadas predominantes no resto do filme – imagens que oscilam de texturas mais sujas (como nos bons segmentos de Ivo Lopes Araújo, Gustavo Bragança e da dupla Marco Dutra-Juliana Rojas) a longas fusões (como no também bom segmento de Leonardo Levis-Raphael Mesquita e naquele dirigido por Karim Aïnouz).

Diferentemente de praticamente todos outros filmes coletivos de episódios que têm infestando os festivais nos últimos anos, que não fazem mais do que colocar diretores de grife em posições constrangedoras, Desassossego é um caso raro de filme que, se não chega a ter uma unidade (o que não é mau, já que “unidade” é justamente o que não se deve querer encontrar num filme coletivo), ao menos parece possuir em suas imagens um sentido comum (a nostalgia, a fascinação pela imagem, a submissão a procedimentos de linguagem mais ou menos rasos seguidos à risca: a fusão, a elipse e a texturização expressionista são alçados à condição de dispositivo). Como peça de filme experimental, o filme sai-se bastante bem, de modo que suas imagens dialogam menos por rimas óbvias ou por um conceito (a carta, mesmo sendo parte constitutiva do filme, não chega a criar um conceito esterilizante) que por sua própria sensualidade.  

Apenas para concluir: não faz sentido observar os filmes reunidos aqui separadamente (felizmente o filme nos faz escapar do comentário clichê a respeito dos filmes em episódios, sobre sua “irregularidade”). Sozinhos, esse filmes – todos eles – são pouco consequentes: alguns divertem (como o do próprio Bragança, além de outros já citados), outros são menos inspirados ou esbarram na própria pretensão (como o segmento de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, onde o exotismo frente a “pureza” dos personagens gera uma espécie de recusa a dar uma forma à própria narrativa). Mas é preciso olhá-los dentro do caleidoscópio maior que é o filme: um caleidoscópio que, tematizando a própria utopia da autoria coletiva, expõe, naquilo que tem de melhor e pior, as forças e as mazelas de um imaginário cinematográfico geracional.

Calac Nogueira


Janeiro de 2012

(1) Texto feito a partir da visão da versão “longa” do filme, de 63 minutos.
(2) Aos que não souberem do que se trata o projeto, basta acessar o blog http://filmedesassossego.blogspot.com/
(3) Hoje, faz mais de 40 anos desde que Godard vendia seus filmes como musicais ou filmes policiais e Luc Moullet seu Billy le Kid como um faroeste.