Se existe o projeto de um cinema confessional em curso, o francês Alain Cavalier parecia o mais promissor a trilhar esse caminho. Havia abandonado “o filme comercial” há décadas. Voltou à cena cinematográfica nos últimos anos com diários íntimos (Le Filmeur em 2005; e Irène, de 2009); precedidos por retratos documentais da mesma natureza (A Optometrista, A Romancista, A Senhora-Lavabo, entre outros), que realizara para a tevê entre o final dos anos 80 e início dos 90.
Em Pater (2011), no entanto, ele não demora nem cinco minutos para implodir as trilhas que o conduziram até aqui. O próprio Cavalier empunha uma faca de maneira tão artificiosa – a lâmina para cima enquanto simula o corte de compotas – que nada daquela ficção construída no literal campo/contracampo de câmeras portáteis pode se sustentar dali em diante. Somos enganados até o fim, quando o diretor (Cavalier) e o ator (Vincent Lindon) trafegam do locus privado ao público, em metáfora/metalinguagem sobrepostas, que se valem do entrecho político (a relação de um presidente e seu
provável sucessor).
De que serve conhecer o tecido mais recôndito do processo criativo se essa intimidade não é compartilhada com o espectador? Ele apenas a encena sem cessar, pelo prazer que as novas tecnologias oferecem. Pater é um “twitt” sem limitação de planos, um jogo sem regras claras ou sequer rituais.
Muito diferente do que propõe Marco Bellocchio em Sorelle Mai. Ao longo de mais de 10 anos, Bellocchio por meio de oficinas audiovisuais com familiares e habitantes de Bobbio, sua cidade natal, construiu o filme. Um filme sujo, pela desigualdade na captação das imagens, mas vigoroso em cada registro. Capaz de captar o frescor da vida com uma intensidade assombrosa. Provavelmente, a obra mais jovem das últimas décadas – e realizada por um septuagenário (o que por si só já diz muito sobre o cinema contemporâneo).
São pequenas tramas, o cotidiano de uma família, mas o que presenciamos, sobretudo, é o passar do tempo, a matéria de Sorelle Mai.
Toda a cumplicidade, o tom confessional do filme emerge fisicamente e à margem da ficção. É algo orgânico. Vemos uma criança se tornar moça, o filho de Bellocchio ficar cada vez mais parecido com Bellocchio ou a despedida misteriosa de um homem sob as águas de um rio como último ato e não simplesmente morte, extinção... É um filme novo com algo de ancestral na (e)vocação da arte como ainda capaz de acompanhar a vida, não só a transfigurando, mas sendo ultrapassada por ela. Recobra nossa fé no cinema.
Também acreditamos mais depois de Histórias da Insônia (Sleepless Nights Stories, 2011), de Jonas Mekas (78 anos!). Uma colagem, em primeira pessoa, de entrevistas, encontros furtivos e meditações sobre a infância entremeadas por letreiros do cinema silencioso. São essas cartelas, espécie de haikais cinematográficos, que nos assombram. Mekas filma as letras, seus contornos, como se o corpo das suas histórias só pudesse existir ali, no silêncio daquelas escrituras. Não estamos com Herzog, mas entramos uma vez mais na caverna dos sonhos esquecidos.
Adolfo Gomes
Janeiro
de 2012
|