cavalo de guerra
War Horse, Steven Spielberg, EUA, 2011

A melhor cena de Cavalo de guerra acontece quando, com o cavalo-protagonista preso nos arames farpados, dois soldados de partes opostas no front se encontram diante do animal para soltá-lo. Para além apelo pacifista, a inocência da criatura proporcionando uma breve trégua num evento grandioso como a guerra, a cena interessa porque reconfigura o olhar infantil do filme diante do animal protagonista. A importância do cavalo ali está menos no drama de sua pureza e sua inocência do que em fazer os homens se lembrarem de casa, da calma, da intimidade e do afeto que só se manifestam plenamente na convivência com o animal. A tensão da cena é muito bem dissipada nas pequenas provocações trocadas pelos soldados, sempre temendo darem um passo em falso (nenhum deles se debruça sobre o animal sem deixar de olhar para o outro que está atrás). A cena funciona como um respiro, uma pequena pausa em um filme sempre em movimento, e que por isso mesmo parece incapaz de nos envolver com qualquer personagem, homem ou animal.

No mais, Cavalo de guerra é um filme-paisagem, como não deixa de atestar o final, quando um pôr-do-sol artificial e laranja toma de assalto a tela sem nenhuma razão aparente que a exacerbação de sua própria beleza aberrante. O que é, por exemplo, a guerra neste filme de Spielberg? “A guerra tomou tudo de todos”, repetem os personagens duas ou três vezes. Mas o que é a guerra de fato, tal e qual a experimentamos na tela? É um rumor distante, algo que vai e vêm no espaço e no tempo, sem exatamente fixar uma imagem do terror e da morte. Mudamos de lado, entramos e saímos dela, mas é como se não fizesse diferença. A guerra é, em suma, uma paisagem. No tour promovido pelo filme, ela talvez seja o ponto mais alto, sendo responsável pelo clímax, mas não há nenhuma mudança de postura ou de tom nos momentos em que adentramos nela – a exuberância é a mesma do resto. É de se perguntar se Spielberg seria capaz de fazer este mesmo filme, com este mesmo olhar inocente, caso a história se passasse durante 2º Guerra Mundial – um evento mais bem digerido e tão caro a ele.

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Cavalo de guerra nos faz pensar em pelo menos dois outros filmes: Crin blanc (1953), de Albert Lamorisse, e A grande testemunha (1966), de Robert Bresson.  Deste último, Spielberg toma a ideia de pegar como protagonista um animal que passa de mão em mão. No filme de Bresson, no entanto, no lugar do cavalo temos um pequeno burro, que funciona como uma espécie de fio-terra, um nervo sensível da terra no qual as ações humanas são barometradas diante da câmera (o amor, os afetos, a maldade, o trabalho). Como todos os filmes de Bresson, se trata menos de um filme sobre homens em particular do que sobre a humanidade, o que de certa maneira justifica a estrutura descentralizada de personagens. Se a comparação é um tanto maldosa, pois o filme de Spielberg é pouco mais do que um mero produto de consumo infantil, ela ao menos dá conta de como, com uma estrutura muito semelhante, o próprio Spielberg é incapaz de dizer o que quer que seja sobre os homens ou a guerra. Tudo parece aleatório e sem vida, como as sequências dos irmãos alemães e do avô e neta franceses, personagens que não passam de mera figuração dentro do andamento do roteiro. 

Crin blanc, de Lamorisse, nos oferece uma comparação talvez mais justa, uma vez que o filme também guarda um ar de fábula infantil. Exatamente como no filme de Spielberg, a história também gira entorno da amizade entre um garoto e um cavalo. Porém, aqui animal e menino guardam, cada um, uma natureza que os separa – o animal preserva algo de selvagem. O filme começa em uma abordagem quase documental: a câmera se debruça sobre aquelas pradarias e o grupo de animais enquanto uma narração em off  nos “explica” que Crin Blanc é o líder de um grupo de cavalos selvagens. A narração chega até mesmo a ensaiar uma psicologia: Crin Blanc detesta os homens, nos diz ela. Só minutos depois o garoto surge e história de ficção começa. Pois bem, a conquista de amizade que o menino impõe sobre Crin Blanc é mais física do que sentimental: ao tentar laçá-lo, ele acaba arrastado por metros, até que enfim o cavalo decide parar e, como que por respeito à bravura e à resistência do garoto, se tornar seu “amigo”. O que é fundamental nesta cena é o fato de o filme não renunciar ao caráter bruto e selvagem do cavalo em prol da historinha. A psicologização do cavalo pela voz em offé uma tentativa conscientemente fajuta do filme de antropomorfizá-lo (a própria textura “documental” das imagens claramente separa-as da narração). Será da mesma forma no fim do filme, quando Crin Blanc arrasta o garoto para o mar e a voz em off fantasiosamente nos explica que eles marcharam rumo a uma terra desconhecida “onde homens e cavalos são amigos”. A beleza da cena reside na tentativa vã de confortar nossa tristeza pela provável morte do garoto com uma fábula fantástica. A selvageria do animal não pode ser domada pela câmera. 

Voltamos então, enfim, a Cavalo de guerra. Mesmo que aqui os animais não falem, o filme faz o possível para antropomorfizá-los. Vide a cena em que o cavalinho Joey “salva” seu amigo preto colocando-se no lugar dele na fila para puxar o canhão, ou os gansos “incríveis” da fazenda do início do filme. Não há nenhum problema a priori em antropomorfizar animais, e estas cenas citadas talvez sejam até mesmo aquelas em que o filme parece ganhar algum sopro de vida, tanto por sua ingenuidade graciosa como pela honestidade em assumir-se como um “filme de bichinho”. O problema de Spielberg é outro, é não estabelecer nenhuma separação entre homem e animal. Ambos ocupam o mesmo lugar na paisagem planificada e exuberante do filme (este mundo fofo onde o grand-père vive isolado com sua netinha fabricando geleias). Nunca sabemos se é uma história sobre homens ou sobre cavalos. No fundo, não é nenhum dos dois, e tampouco se trata de um filme sobre a “relação” entre ambos (como em Crin Blanc). Sem se decidir sobre seu objeto sentimental, Spielberg realiza um épico frouxo no qual mesmo o reencontro entre o jovenzinho e seu cavalo no fim parece casual e aleatório demais para servir de clímax minimamente aguardado. 

Calac Nogueira


 Janeiro de 2012