Vontade
Indômita se diferencia um pouco da grande parte dos
filmes americanos que se propõem a apregoar os valores fundadores de sua nação,
pois aqui não é apenas a saga do self-made man que está em pauta (esta
até existe, mas é mais uma figura dramática que um ponto de chegada). A
verdadeira questão do filme está num desdobramento mais específico e mais
profundo desta ideia clássica, e que diz respeito à dicotomia entre o
individualismo e a visão do coletivo, entre o homem como ser autônomo ou como
parte constituinte da engrenagem social solidária. A posição assumida é muito clara: realizado
em plena época do macarthismo, é o que se pode chamar de um autêntico filme “de
direita”, onde a visão “humanista” camufla a ojeriza diante da ação do coletivo
sobre indivíduo, vista necessariamente como castradora da autonomia individual
e da subjetividade livre.
Seria totalmente possível imaginar um filme que partilhasse fervorosamente dos
mesmos valores do filme de Vidor, aplicando-os, no entanto, a um contexto mais
específico e concreto, por exemplo a ascensão do nazismo nas décadas de 1920 e
30 na Alemanha (este filme imaginário talvez já exista em versão paródica: O
Grande Ditador). Neste caso, se desenharia o clássico episódio da tomada de
consciência diante de um imperativo atroz e incontornável (e o mesmo humanismo
do filme se identificaria fatalmente com o discurso “de esquerda”). Mas este
imperativo circunstancial não acabaria, ele mesmo, por esvaziar todo o conteúdo
político do filme? Que sentido político pode haver nas escolhas de um homem acuado pela
sombra absurda do nazismo? Voltemos ao filme de Vidor: não é um simples filme
de direita. Vidor nos oferece uma visão ampla, do todo. E ele o faz da forma
mais livre possível, como um panfleto espetaculoso e gratuito, de uma ambição
desmedida que quase compromete qualquer credibilidade naturalista. Mas é
justamente nesta ambição, nessa liberdade, nessa gratuidade, nessa
indelicadeza mesmo – além, claro, da genialidade de Vidor – que
Vontade indômita se afirma, em termos estritamente formais, como talvez o maior
épico sobre a modernidade já realizado.
Essa dimensão épica resulta dos espaços (físicos
e simbólicos) por onde os personagens circulam. São duas instâncias básicas: a
arquitetura (o espaço físico, mas também estético e simbólico, e é aí que
reside o ponto da vida de Howard Roark, o
protagonista interpretado por Gary Cooper) e o jornalismo (a opinião pública,
os valores, a moral). Há homens que trabalham projetando espaços (os
arquitetos, como Roark) e outros que trabalham
domando a opinião pública (os jornalistas). Este mundo, a despeito de seus
contornos ‘grosseiros’ (ou simplesmente dramatizados, diríamos), é um mundo completo – se a opinião pública é
responsável por ditar como pensamos, cabe à arquitetura definir o modo como
experimentamos o espaço. E o que se pode dizer sobre este mundo de Vontade indômita? É um mundo,
primeiramente, ainda em construção (se há uma mitologia que ecoa aqui, é a da
América ainda como uma terra virgem, sem história, pronta a ser dominada por
homens trabalhadores e visionários de um espírito moderno). Mas é também já um
mundo frio e duro, prematuramente dominado por forças corruptas.
Se é Roark que encarna o herói capaz de salvar a América da
corrupção das massas e da mediocridade do senso comum com seu idealismo
incorruptível, vale notar, no entanto, que ele o faz “apenas” como arquiteto. Sua arma é seu
próprio trabalho (no sentido de uma obra de arte, que expressa uma verdade
daquele que a produz – e cuja honestidade intrínseca é o próprio pilar responsável
pela evolução do homem, o passo avante à mediocridade). E é nessa passagem de
um concreto (a arquitetura) para o simbólico (o “gênio” e a “modernidade” de
que os trabalhos de Roark são emblemas) que o filme
de Vidor encontra a expressão do sublime.
Mise en scène aqui pode ser entendia nos termos das relações metafísicas que os
personagens estabelecem com o espaço cênico. Cada gesto do filme é imbuído de
um sentido colossal – vide o plano de Roark no
alto de um arranha-céu, com Dominique subindo em um andaime em direção a ele, nas
palavras de João Bénard da Costa, “o plano mais
fálico da história do cinema.” E, no entanto, tudo é tão devastadoramente
concreto, de modo que aquelas maquetes assombrosas de arranha-céus, causa de
amor e desolação de Roark, parecem estar em cada
plano do filme.
Até aqui não fizemos mais do apenas narrar
o que é evidente diante de uma visão do filme. Deixemos então que a evidência
fale por si mesma:
(Texto escrito por ocasião da exibição do filme na mostra Luc Moullet, CCBB/RJ)
Calac Nogueira
Agosto
de 2011
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