Toy Story 3 emerge do magma das tendências mais pregnantes desse fim de década para se
afirmar como uma das aventuras mais radicais do cinema recente. O ritmo non-stop,
impressionante mesmo para o padrão dos games e filmes de puro movimento, e a
intensificação de uma montanha-russa nas inflexões dramáticas, longe de
acobertarem a densidade da trama, a trazem para superfície, gerando uma obra de
fortíssimo impacto emocional.
Tudo aquilo que já existia nos dois filmes
anteriores aqui é potencializado, em especial o sentimento de anarquia presente
no funcionamento de uma vasta comunidade de personagens regidos pela diversidade
e por uma imaginação selvagem. Se arquétipos são inerentes à animação de modo
geral, o que faz dos personagens de Toy Story seres de existência tão
marcante é a ênfase em suas singularidades. E num conjunto de
singularidades: o número de personagens dividindo a cena – e eles a
dividem de forma genuína – é surpreendente e traz a percepção de um
coletivo que só sabe existir como tal.
O espírito da “escapada”, muito bem
trabalhado no segundo filme, volta aqui menos como mote narrativo, e mais como
fundamento profundo ligado ao arcabouço da trama. É como se o espírito da
ingenuidade (e verdade) do movimento, que animou os primeiros grandes filmes do
cinema, sobretudo os de Buster Keaton, fosse resgatado para fazer eco a um
outro tipo de pureza, a da alma. Sim, porque se Toy Story retorna ao
mundo infantil, ele o faz imbuído de uma busca obstinada por uma outra lógica,
uma lógica perdida, um olhar mágico qualquer que os grandes homens ignoram (ou
perderam). E neste terceiro episódio este retorno utópico é violento: todas as
questões de passagem do tempo e do medo do abandono dizem respeito à dor
terrível do esquecimento que assombra o filme.
O heroísmo e o vilanismo são, pois,
construídos a partir de valores e distinções fundamentais: de um lado, a
lealdade, a nobreza, a sinceridade; de outro, o rancor, a mágoa, a amargura. Em
cada uma de suas esquetes e situações, o filme se afirma sob o signo do tempo,
do momentâneo, do provisório, do acaso, colocando em evidência um destino em
aberto que é construído a cada ação ou reação positiva ou negativa. O duplo
mudança-permanência, caro à estrutura narrativa clássica, revela-se aqui uma
força de transformação sem reservas. Afinal, a fidelidade em jogo não diz
respeito à manutenção de um estado, mas de uma integridade. Manter algo intacto
é rejeitar a destruição, mas saber incorporar as alterações trazidas pelo
tempo. Um brinquedo pode desbotar e gastar, mas não pode ser estraçalhado.
Há por certo algo de espantoso na carga
ética mobilizada por este filme, mas talvez o elogio gráfico ao movimento e à
caracterização da matéria o sejam ainda mais. Não falo, evidentemente, apenas da
técnica de animação capaz de representar em detalhes os pelos do urso de
pelúcia ou a textura plastificada da pele do boneco Ken, mas de uma compreensão
profunda dos desígnios físicos dos materiais e das formas. A graça, portanto,
não vem apenas das paródias ou dos malabarismos acionados para engendrar as
fugas, mas de uma caricatura do mundo que demonstra enxergar para bem além das
aparências. A movimentação dos bonecos Barbie e Ken, por exemplo, traduz à
perfeição a articulação dos brinquedos no mundo real, mas também os caracteriza
em sua natureza “interior”: travados, de movimentos prescritos e limitados,
eles correspondem ao mauricinho e à patricinha moldados pela sociedade.
Toy Story 3 está repleto de genialidades como essa, que o tornam uma experiência de
estímulos ininterruptos para o espectador. O maior de seus trunfos, porém, não
está nas tiradas engraçadíssimas e nos intermináveis gracejos de cena, mas justamente
no alcance humano da narrativa. O esforço de generosidade que o filme aciona é
amplo, e não apenas se dirige às memórias e experiências pessoais de quem
assiste, como abarca um leque quase infinito de situações concretas. De fato, fazia
muito tempo que um filme não se dirigia ao mundo das pessoas reais de
forma tão potente quanto este.
Tatiana Monassa
Agosto
de 2011 |