No escuro do cinema
Super 8, de J. J. Abrams, EUA, 2011
Lanterna Verde (Green Lantern), Martin Campbell, EUA, 2011

Luz vintage

O que se vê muito nesse novo filme de Abrams/Spielberg é a luz: dos projetores de super 8, dos refletores usados pelos personagens mirins para a produção do curta-metragem caseiro, nos fogos de artifício pelos quais um destes personagens é obcecado, no objeto voador que decola e, marcadamente, nos flares azulados que riscam boa parte dos planos noturnos. Esta luminosidade toda, diga-se logo, mesmo correndo o risco de acender velas para uma metáfora já muito gasta, está relacionada ao motivo central da filmografia do realizador de Tubarão: a de que por mais desestruturada seja a família da vez, há sempre uma luz no fim do túnel (falo em Spielberg, pois é claro: pouco importa que seu nome não esteja nos créditos de direção e sim que este longa-metragem tenha sido feito especialmente para ele).

Tal luz se anuncia desde o início. Não apenas por meio dos signos citados, mas pela própria trama. Sem demora, ela nos desenha o painel das famílias “faltantes”- ambas sem a figura da mãe - e conflituosas. Rapidamente, portanto, saberemos que há esperança para estas pessoas. A redenção virá, não surpreende ninguém, graças a um evento extraordinário, que causará a união forçada dos núcleos familiares. Ao fim da batalha, a grande família então formada notará que a luz do amor e da conciliação sempre esteve em suas almas. Faltava-lhes apenas a força de vontade para tatear a parede escura em busca do interruptor.

No entanto, o grande problema de Super 8 está justamente no evento extraordinário. Enquanto ele não acontece e o que acompanhamos são os momentos ordinários da cidadezinha do interior, nos é provocado aquele tipo de emoção que certamente estaria presente nas peças de divulgação se o filme tivesse sido lançado em 1979 (“aventura!”, “romance!”, “humor!”). A sequência da filmagem, pelos garotos, da despedida na estação de trem, reúne, brilhantemente, as três emoções. Há algo de tocante neste segmento, emanando não apenas da diegese, mas daquilo que ela ecoa: a paixão do amador pelo cinema. Amador tanto no sentido de Douchet, daquele que ama, quanto daquele que não é profissional. O amor, expresso pela feitura de um filme caseiro, é a tentativa de imitar os mestres (com os poucos recursos que se tem) e, ao mesmo tempo, prolongar a experiência cinéfila. É durante a emulação desta filmagem caseira que ocorre uma epifania. Alice (Elle Fanning) irá atuar pela primeira vez e, enquanto a câmera não está pronta, ensaia o texto junto com outro personagem. A luz que emana dessa atuação, potencializada pela montagem, em uma série de planos e contraplanos do rosto dos personagens absolutamente atônitos diante daquela descoberta, é encantadora. Não seria exagero, já que estamos no terreno das imagens católicas – como quase sempre em Spielberg –, dizer que a cena poderia muito bem ser a de uma aparição de uma santa. Ou melhor, da imagem ocidental de uma santa: cabelos loiros, olhos azuis, pele branca.

Mas, eis que o “real” evento extraordinário aparece (para homens infantilizados como Spielberg e Abrams, algo só é verdadeiramente extraordinário quando explode) e, gradativamente, Super 8 afasta-se do gosto pelo particular, pelo amador, pelo íntimo, pela luz emitida dos personagens e passa a se interessar pelas luzes do espetáculo. Já sabendo o que há ao fim do túnel, nos resta apenas acompanhar as explosões e as correrias de lá para cá das crianças, sem que nos seja causado qualquer senso de perigo – este é o grande defeito do terceiro ato de Super 8 e não a previsibilidade da trama, evidentemente. Na rápida cena em que Joe (Joel Courtney) é afugentado da varanda de Alice pelo bêbado de costeletas ameaçadoras de quarenta centímetros que, imenso infortúnio, é o pai da garota, sentimos muito mais o perigo que ronda os personagens do que quando o extraterrestre de ameaçadores braços de sete metros tenta devorar a mocinha. Da mesma forma que a singela composição (que se repete no mínimo duas vezes, mudando um dos personagens), com Alice, de lágrimas nos olhos, em primeiro plano, ocupando o lado esquerdo do quadro e Joe ao lado oposto, ambos de frente para a câmera e separados pela luz de um projetor, é muito mais “cinematográfica” e cativante do que o voo da nave espacial e do coraçãozinho de prata, ao fim do filme. Mais uma vez, outra bela ideia que fala da própria arte, por meio de uma troca de papéis: é como se nós, os espectadores, passássemos a ser a tela e víssemos a reação que, enquanto imagem, provocamos. E, então, quando a montagem nos joga outra vez para o lugar dos personagens e enxergamos as imagens que eles assistem, percebemos porque, mesmo com o estado atual das coisas, mesmo com a debilidade de Super 8, amamos o cinema. Para Abrams/Spielberg, infelizmente, isto é apenas uma paixonitezinha. O verdadeiro amor está em ver monstros gigantes, trens distorcidos, naves voando em câmera lenta ao som de música melosa.

Luz hi-tech

Assim como em Super 8, há muita luz e cristianismo em Lanterna verde, embora haja ainda menos cinema. A luz, aqui, não tem nada da antiquada natureza do flare azulado que provém diretamente de uma fonte de luz presente no set. Tudo o que brilha no longa-metragem de Martin Campbel foi feito depois. Há, naturalmente, muita coisa brilhando, uma vez que a narrativa trata de um herói que utiliza a luz interior para vencer os inimigos. A adesão às luzes do espetáculo (infantil) é total, como não poderia deixar de ser.

O herói, quando precisa salvar um helicóptero que está prestes a cair, utiliza seu anel – que lhe permite criar qualquer forma, a partir da sua imaginação e força de vontade – para transformar objeto voador em um hot Rod que, ao invés de pousar no chão, o faz em uma pista da Hot wheels. O próprio fato de se transmutar a luz em objetos sólidos já é uma estupidez por si só, o que dirá em brinquedos. Mais irritante, e ainda mais previsível, é toda a construção da narrativa em torno da ideia do escolhido: como nas representações européias e etnocêntricas de Jesus Cristo, o salvador do universo em Lanterna verde, dentre todos os outros quatro mil guardiões (todos feiosos) é caucasiano e anglo-saxão. Não, pior: é Ryan Reynolds!

Tudo isso não teria qualquer importância se, como produto de aventura, Lanterna verde não fosse tão inábil. Assim como em Super 8, as cenas de ação não oferecem qualquer perigo. A batalha do clímax é tão insossa que a impressão que se tem é que Hal Jordan está derrotando uma grande pasta de dentes sabor chumbo espalhada pela pia (é exatamente o que o formato do vilão lembra, afinal) ao invés da criatura capaz de destruir o universo.

Ainda que Super 8 seja melhor do que Lanterna verde, nós, na posição de amadores, queremos mais, sempre mais. As luzes se acendem e das salas saímos com quase nada.

Wellington Sari


 Agosto de 2011