DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE REI LEAR,
DE GODARD

Jean-Luc Godard, Rei Lear, EUA, 1987


1. Godard, “ator”: Na boca, torta, tal um Popeye pós-cataclismo nuclear, o eterno charuto: Godard, fosse um signo, seria o do cineasta à moda antiga – da era de ouro, precisamente. Neste mundo de Rei Lear, em que um acidente em Chernobyl dizimou as artes, que se busca começar tudo outra vez, ele é a própria imagem do diretor de cinema. A primeira e única. O que quer dizer que a figura parecendo uma mistura de Popeye com Hawks não é algo que está no plano para nos fazer lembrar uma imagem anterior. Sendo pura e ingênua, como toda primeira imagem (lembrar do desenho infantil), é inteiramente despida de conceito. Correção, portanto: Godard jamais poderia ser um signo, um personagem, um papel, uma representação. É um erro chamá-lo de ator (de alguém que “mente”, uma vez que a primeira imagem nunca mente) e é um erro maior ainda quando se diz que o cineasta “projeta uma imagem” quando está diante da câmera. A imagem, sempre, é projetada pelas costas do espectador. Nunca pela frente.

Ser ou não ser jamais chega a ser uma questão. Godard, quando está na tela, é

2. Molly Ringwald: Ainda que tenhamos visto a atriz em John Hughes, que estejamos familiarizados com sua imagem, ela se mostra tão virgem quanto em Gatinhas e gatões. Rei Lear não é a primeira obra oitentista de Godard a se propor filmar o mundo como se ele estivesse sendo enxergado pelos olhos da câmera pela primeira vez. No entanto, aqui tal vontade é exposta já na própria pele do filme, enquanto nos outros habitava o coração.  Godard não filma uma ruiva que, durante o período de realização do longa-metragem desfrutava a condição de ícone dos filmes adolescentes (a Cordélia de Hughes?) e que, logo, era uma imagem que já carregava um sentido de antemão. Ele filma a pele – com pintinhas –, os lábios, a cor do cabelo, os olhos castanhos.

Como se fosse a primeira vez.

3. Sr. Alien: O que despertou o interesse de Godard em Woody Allen? Poder fazer um trocadilho com o sobrenome do nova-iorquino, algo que o francês já havia feito em Meeting WA.

Nada mais.

4. Coisa nenhuma: Na cópia de Rei Lear exibida atualmente na TV a cabo, as cartelas de texto, presentes durante toda a duração do filme, foram traduzidas. Seria possível uma atitude mais tola do que esta? Godard talvez seja o cineasta que mais tenha filmado a palavra na história do cinema (Philippe Dubois observa, jocosamente, que o diretor já colocou pessoas lendo livros em seus filmes em todas as opções imagináveis). Nesta relação um pouco esquizofrênica – lembrar que os roteiros escritos por JLC muitas vezes não ultrapassam duas páginas – Godard transformou a palavra em imagem. Não necessariamente por determinados valores dos poetas concretistas, por exemplo, que desenham as páginas com palavras, mas por desconstruí-las, questioná-las, rearranjá-las – algo que também fazem os concretistas – e, principalmente, pela vontade de destruí-las, pela radiação de luzes, e substituí-las eternamente por imagens. Sendo assim, como traduzir uma imagem? Isso não se faz.

Coisa nenhumanão é nothing.

Wellington Sari


 Agosto de 2011