1. Godard, “ator”: Na boca, torta, tal um Popeye pós-cataclismo
nuclear, o eterno charuto: Godard, fosse um signo, seria o do cineasta à moda
antiga – da era de ouro, precisamente. Neste mundo de Rei Lear, em
que um acidente em Chernobyl dizimou as artes, que se busca começar tudo outra
vez, ele é a própria imagem do diretor de cinema. A primeira e única. O que
quer dizer que a figura parecendo uma mistura de Popeye com Hawks não é algo
que está no plano para nos fazer lembrar uma imagem anterior. Sendo pura e
ingênua, como toda primeira imagem (lembrar do desenho infantil), é
inteiramente despida de conceito. Correção, portanto: Godard jamais poderia ser
um signo, um personagem, um papel, uma representação. É um erro chamá-lo de
ator (de alguém que “mente”, uma vez que a primeira imagem nunca mente) e é um
erro maior ainda quando se diz que o cineasta “projeta uma imagem” quando está
diante da câmera. A imagem, sempre, é projetada pelas costas do espectador. Nunca
pela frente.
Ser ou não ser jamais chega a ser uma questão. Godard, quando está na
tela, é.
2. Molly Ringwald: Ainda que tenhamos visto a atriz em John Hughes,
que estejamos familiarizados com sua imagem, ela se mostra tão virgem quanto em Gatinhas e gatões. Rei Lear não é a primeira obra oitentista de
Godard a se propor filmar o mundo como se ele estivesse sendo enxergado pelos
olhos da câmera pela primeira vez. No entanto, aqui tal vontade é exposta já na
própria pele do filme, enquanto nos outros habitava o coração. Godard não
filma uma ruiva que, durante o período de realização do longa-metragem
desfrutava a condição de ícone dos filmes adolescentes (a Cordélia de Hughes?)
e que, logo, era uma imagem que já carregava um sentido de antemão. Ele filma a
pele – com pintinhas –, os lábios, a cor do cabelo, os olhos
castanhos.
Como se fosse a primeira vez.
3. Sr. Alien: O que despertou o interesse de Godard em Woody
Allen? Poder fazer um trocadilho com o sobrenome do nova-iorquino, algo que o
francês já havia feito em Meeting WA.
Nada mais.
4. Coisa nenhuma: Na cópia de Rei Lear exibida atualmente na
TV a cabo, as cartelas de texto, presentes durante toda a duração do filme,
foram traduzidas. Seria possível uma atitude mais tola do que esta? Godard
talvez seja o cineasta que mais tenha filmado a palavra na história do cinema
(Philippe Dubois observa, jocosamente, que o diretor já colocou pessoas lendo
livros em seus filmes em todas as opções imagináveis). Nesta relação um pouco
esquizofrênica – lembrar que os roteiros escritos por JLC muitas vezes
não ultrapassam duas páginas – Godard transformou a palavra em imagem. Não
necessariamente por determinados valores dos poetas concretistas, por exemplo,
que desenham as páginas com palavras, mas por desconstruí-las, questioná-las,
rearranjá-las – algo que também fazem os concretistas – e,
principalmente, pela vontade de destruí-las, pela radiação de luzes, e substituí-las
eternamente por imagens. Sendo assim, como traduzir uma imagem? Isso não se
faz.
Coisa nenhumanão é nothing.
Wellington Sari
Agosto
de 2011
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