O ÚLTIMO MESTRE DO AR
M. Night Shyamalan, The Last Airbender, EUA, 2011

O reino dos bons sentimentos

Muito já se falou sobre a frontalidade da mise-en-scène de Shyamalan, ou sobre a “honestidade” de sua narração. Mas talvez ainda seja preciso assinalar o quanto, assim como Eastwood, ele é um dos raros cineastas capazes de isolar um sentimento e construir o quadro em torno dele. E é esta arte, acima das outras, que ele vem depurando em seus últimos filmes, desde A Dama na Água. Se aquele era um filme construído para desarmar a crítica, ao buscar na lógica infantil sua grande força, os seguintes já pressupõem uma postura de desarmamento completo para uma fruição apropriada.

Afinal, só pode amar verdadeiramente um filme de Shyamalan aquele que libera seus instintos infantis ao entrar na sala de cinema. A inocência é o parti-pris de seu cinema: Shyamalan filma como se o mundo fosse um lugar virgem de imagens; filma como uma criança movida pela curiosidade da descoberta de coisas banais. Há de se reparar que não são poucas as expressões de surpresa nos rostos de seus atores. Assim como, mesmo que a trama prescinda de justificativas e os acontecimentos narrativos se expliquem por outros meios, é sempre preciso que os personagens elucidem as coisas desde o princípio, não raro mais de uma vez, pois tudo é novo e deve ser aprendido.

Se Shyamalan foi com frequência apontado como um herdeiro do legado hitchcockiano (pela precisão de sua mise-en-scène e pela maestria na direção do olhar), em relação à “verdade do mundo”, ele não poderia ser menos hitchcockiano. Pois não há suspeita na imagem de Shyamalan; seu quadro não existe para ocultar, apenas para mostrar. Não há segundas intenções nem desconfianças em seu universo. E, neste sentido, ele talvez seja o mais lumièriano dos cineastas atuais, pois em seu cinema o quadro existe para dar a ver a verdade do mundo – e isto cada vez mais, de filme para filme (é precisamente aí que reside seu didatismo). Se o mundo possui traços fantásticos, trata-se apenas de um detalhe. Porque a verdade da imagem corresponde à verdade de uma experiência. (Não há quem afirme justamente que Lumière fazia cinema fantástico?!)

O que dizer então de O Último Mestre do Ar, esta fábula neo-budista contemporânea travestida de filme infantil de aventura, cujo super-herói mirim carrega simultaneamente o peso esmagador da responsabilidade e da culpa? O que dizer senão que este é o filme-de-efeitos-especiais mais cru e belo feito nos últimos anos, em que não são os efeitos ou as ações mirabolantes que estão em cena, mas pessoas movidas pela verdade de seus sentimentos? Desde o primeiro plano, O Último Mestre do Ar espanta por uma franqueza reinventada, impressa nos rostos dos personagens, pela simplicidade brutal da narrativa, pelo fascínio confesso em ver tudo aquilo que está sendo mostrado – em acreditar, segundo após segundo.

Trata-se de um filme de ação que fixa os rostos e os corpos, que admira as expressões e os movimentos – cada golpe, cada voo, cada manejo de poderes especiais. Um filme no qual os heróis e os vilões são movidos pelos sentimentos mais humanos possíveis e em que o acolhimento familiar é o tesouro maior. Uma história na qual o amor é selado não por linhas de roteiro, mas por uma troca de olhares. Uma obra na qual homem e elemento natural não são figura e fundo, mas se fundem num só conjunto.

E na progressão do cinema de Shyamalan em direção à depuração de um formato que consistiria em minimizar o impacto da forma para maximizar os efeitos emocionais, O Último Mestre do Ar dá um passo gigantesco. Inútil, pois, tentar buscar nesse filme um grande feito cinematográfico – algo que ele nunca se pretenderia a ser. Só há os sentimentos em jogo. O futuro da humanidade “primitiva” do universo do filme depende da vitória dos bons sentimentos. As más ambições dos vilões nem mesmo são pautadas por vontade de dinheiro ou poder, mas por maldades associadas ao egoísmo, ao ciúme e a outros sentimentos negativos contra os quais se deve continuamente lutar.

A grande diferença da utopia espiritualista new age deste filme para a de um Avatar, por exemplo, é que nele as metáforas e fantasias não querem necessariamente estabelecer uma comunicação direta com a atualidade do presente, mas com um sentimento de verdade transcendente e eterna. A inspiração orientalista não é uma moda redescoberta, mas uma concepção profunda das coisas. Antes de ser um filme utópico contemporâneo, O Último Mestre do Ar é um conto religioso antiquado, cujo multiculturalismo revela-se uma roupagem natural e inevitável. Mais um conto de ninar de Shyamalan. Ou melhor: uma fábula educativa para educar os corações das crianças.

Tatiana Monassa


 Agosto de 2011