O reino dos bons sentimentos
Muito já se falou sobre a frontalidade da mise-en-scène de Shyamalan, ou sobre a “honestidade” de sua narração. Mas talvez ainda seja
preciso assinalar o quanto, assim como Eastwood, ele é um dos raros cineastas
capazes de isolar um sentimento e construir o quadro em torno dele. E é esta
arte, acima das outras, que ele vem depurando em seus últimos filmes, desde A
Dama na Água. Se aquele era um filme construído para desarmar a crítica, ao
buscar na lógica infantil sua grande força, os seguintes já pressupõem uma
postura de desarmamento completo para uma fruição apropriada.
Afinal, só pode amar verdadeiramente um
filme de Shyamalan aquele que libera seus instintos infantis ao entrar na sala
de cinema. A inocência é o parti-pris de seu cinema: Shyamalan filma
como se o mundo fosse um lugar virgem de imagens; filma como uma criança movida
pela curiosidade da descoberta de coisas banais. Há de se reparar que não são
poucas as expressões de surpresa nos rostos de seus atores. Assim como, mesmo
que a trama prescinda de justificativas e os acontecimentos narrativos se
expliquem por outros meios, é sempre preciso que os personagens elucidem as
coisas desde o princípio, não raro mais de uma vez, pois tudo é novo e
deve ser aprendido.
Se Shyamalan foi com frequência apontado
como um herdeiro do legado hitchcockiano (pela precisão de sua mise-en-scène e pela maestria na direção do olhar), em relação à “verdade do mundo”, ele não
poderia ser menos hitchcockiano. Pois não há suspeita na imagem de Shyamalan; seu
quadro não existe para ocultar, apenas para mostrar. Não há segundas intenções
nem desconfianças em seu universo. E, neste sentido, ele talvez seja o mais
lumièriano dos cineastas atuais, pois em seu cinema o quadro existe para dar a
ver a verdade do mundo – e isto cada vez mais, de filme para filme (é precisamente
aí que reside seu didatismo). Se o mundo possui traços fantásticos, trata-se
apenas de um detalhe. Porque a verdade da imagem corresponde à verdade de uma experiência.
(Não há quem afirme justamente que Lumière fazia cinema fantástico?!)
O que dizer então de O Último Mestre do
Ar, esta fábula neo-budista contemporânea travestida de filme infantil de
aventura, cujo super-herói mirim carrega simultaneamente o peso esmagador da
responsabilidade e da culpa? O que dizer senão que este é o
filme-de-efeitos-especiais mais cru e belo feito nos últimos anos, em que não
são os efeitos ou as ações mirabolantes que estão em cena, mas pessoas movidas
pela verdade de seus sentimentos? Desde o primeiro plano, O Último Mestre do
Ar espanta por uma franqueza reinventada, impressa nos rostos dos
personagens, pela simplicidade brutal da narrativa, pelo fascínio confesso em ver tudo aquilo que está sendo mostrado – em acreditar, segundo após
segundo.
Trata-se de um filme de ação que fixa os
rostos e os corpos, que admira as expressões e os movimentos – cada
golpe, cada voo, cada manejo de poderes especiais. Um filme no qual os heróis e
os vilões são movidos pelos sentimentos mais humanos possíveis e em que o
acolhimento familiar é o tesouro maior. Uma história na qual o amor é selado
não por linhas de roteiro, mas por uma troca de olhares. Uma obra na qual homem
e elemento natural não são figura e fundo, mas se fundem num só conjunto.
E na progressão do cinema de Shyamalan em
direção à depuração de um formato que consistiria em minimizar o impacto da
forma para maximizar os efeitos emocionais, O Último Mestre do Ar dá um
passo gigantesco. Inútil, pois, tentar buscar nesse filme um grande feito cinematográfico – algo que ele nunca se pretenderia a ser. Só há os sentimentos em jogo. O futuro da humanidade
“primitiva” do universo do filme depende da vitória dos bons sentimentos. As más
ambições dos vilões nem mesmo são pautadas por vontade de dinheiro ou poder,
mas por maldades associadas ao egoísmo, ao ciúme e a outros sentimentos
negativos contra os quais se deve continuamente lutar.
A grande diferença da utopia espiritualista new age deste filme para a de um Avatar, por exemplo, é que nele
as metáforas e fantasias não querem necessariamente estabelecer uma comunicação
direta com a atualidade do presente, mas com um sentimento de verdade
transcendente e eterna. A inspiração orientalista não é uma moda redescoberta,
mas uma concepção profunda das coisas. Antes de ser um filme utópico
contemporâneo, O Último Mestre do Ar é um conto religioso antiquado,
cujo multiculturalismo revela-se uma roupagem natural e inevitável. Mais um
conto de ninar de Shyamalan. Ou melhor: uma fábula educativa para educar os
corações das crianças.
Tatiana Monassa
Agosto
de 2011 |