WONG KAR-WAI: A TRILOGIA E A LÓGICA
DO AFETO

A desgraça foi selada em um corte: aquele que, lá em Dias Selvagens, unia o telefonema de Su Li-zhen para o vazio (pois o destinatário, seu amigo policial, não mais lá se encontrava) ao balé de Chow preparando-se para sair de casa. Segundo a lógica fatalista que encadeia desencontros, talvez o ainda-não-personagem Chow estivesse indo encontrar a futura esposa; talvez não. O fato é que, pouco tempo depois, quando Su e Chow se conhecem como vizinhos em Amor à Flor da Pele, ambos já casados, o destino tinha sido escrito.

O constrangimento em sua primeira troca de olhares (evocado na cartela literária no início) é testemunho disso. Ainda assim, o amor que surge entre eles (ou seria mais apropriado dizer: aquele que Chow desenvolve por Su?), fruto das "emoções que nos pegam de surpresa" (nas palavras de Chow), é o sentimento em seu estado mais puro.

Amor à Flor da Peleé a célula matricial do cinema de Wong Kar-wai: é onde o amor acontece pleno e correspondido, embora banhado de impossibilidade desde sempre. E ele se manifesta, aqui, no tempo sem tempo da clandestinidade à qual as relações ilícitas estão condenadas. O "relacionamento" em questão é, para todos os efeitos, uma amizade; a amizade mais sincera possível. Mas isto não o salva de ser ilícito e sem probabilidade alguma de futuro, além das horas que escoam sem que eles percebam. A vida começa e acaba ali.

A intensidade que o filme constrói em seu ritmo lânguido e alongado, é progressiva e brutal. Do primeiro "ato" apressado, em que os personagens são apresentados e a situação brevemente desenvolvida para que se chegue no início da amizade entre Chow e Su, ao segundo, em que vemos o companheirismo talhar dois seres feitos um para o outro, temos a evolução natural de uma situação. No cinema de Wong, porém, o descompasso é a lei maior, e tudo tende a morrer precocemente. O terceiro ato é, portanto, a crueldade materializada em perguntas, silêncios e ausências. Poucas vezes o cinema filmou tão bem a dor quanto neste filme. Ela é o sentimento agudo que perfura as imagens ao som da trilha musical. Ela é o insuportável das elipses, do fora de campo, de tudo o que é absolutamente impalpável, mas não menos violento.

Veremos Su procurar Chow em Singapura depois dele partir, assim como olhar com ternura para seu apartamento anos depois. Mas ele não. Chow segue ao som da voz de Nat King Cole cantando Quizás, quizás, quizás. Se Su é a firmeza de uma vontade de estabilidade (ela sempre quis casar, desde Dias Selvagens) que a permite eventualmente se apoiar em uma ou outra certeza (um filho, por exemplo), Chow segue sofrendo com a dúvida que causou a morte prematura do grande (único?) amor de sua vida. Pois sussurrar o segredo num buraco nas ruínas de Angkor Wat não foi suficiente. Ele não foi capaz de deixá-lo lá.

2046 é, portanto, o filme impossível a partir deste grande ponto final. É o universo feito de prolongamentos virtuais a partir da única coisa concreta que existiu: as horas que Chow e Su compartilharam. Trata-se de um filme por natureza claustrofóbico, que inicia e termina com a imagem do tal "buraco na árvore" – aqui totalmente estilizado e reinterpretado, re-figurado de acordo com o imaginário de ficção científica do livro escrito por Chow. Uma obra na qual o cinemascope filmado com teleobjetivas encerra os personagens em destinos sombrios e desesperançados.

Seria 2046 apenas um compêndio de imagens dos intermináveis processos interiores dos personagens, todos sugados pela imaginação de Chow para dentro de seu "buraco na árvore"? Seria o filme uma grande abstração fantasmática? Um enorme labirinto mental no qual o mundo material é apenas uma miragem?

Se Amor à Flor da Pele é um filme de intensidade, de percurso linear baseado em acontecimentos físicos e circunstanciais, 2046 é um filme de aceleração, de desordem e abismos provocados por paranoias e expectativas. De um lado, o mundo, a experiência, a realidade, de outro, a projeção, a imaginação, o delírio. Após o trauma, nada mais é possível, a consciência se afasta do concreto: o universo desmorona irremediavelmente.

O cinismo de Chow ao início de 2046 o tornou quase irreconhecível aos nossos olhos. Mas, aos poucos, as expressões faciais que conhecíamos do filme precedente voltam a habitar o rosto de Tony Leung. Precisamente quando ele se aproxima de Jingwen, filha do proprietário do hotel onde mora, e desenvolve com ela uma parceria de escrita muito próxima à que ele tinha descoberto com Su Li-zhen. Teria o amor uma origem precisa?

Se, em Amor à Flor da Pele, o desejo de longa data de Chow de escrever ganha fôlego a partir da faísca despertada por Su, em 2046 a aliança criativa revela-se, de uma vez por todas, o grande motor da afetividade – ausente até este ponto de todas as demais relações de Chow com mulheres. Jingwen ressuscita o coração massacrado do personagem. E, justamente pela ficção, ele descobre enfim uma forma possível de redenção: brincar com todas as histórias que vivenciou ou presenciou, expurgando, através de metáforas, os sentimentos dolorosos.

Mas, se estas metáforas funcionam para o melhor entendimento de si próprio, elas também condensam as dores e retêm os afetos, que nunca se dissipam. A tragédia torna-se um estado de mundo, um estrago disseminado. Com sua tentativa ingrata de mapear as diferentes razões que poderiam habitar as elipses de Amor à Flor da Pele, 2046 é igualmente um inventário destas dores e afetos, um handbook das relações amorosas – não apenas as de Chow, como as de todos os que cruzam o seu caminho. Trata-se de cacos da experiência refletidos pelo prisma impreciso da razão, em que tudo permanece irremediavelmente turvo e longínquo, perdido no passado do acontecido, no campo do intangível e da obsessão: matéria apenas da memória.

Tatiana Monassa


 Agosto de 2011