Primeiro, uma ressalva: além de crítico da
Contracampo, fui um dos curadores e produtores, juntamente com Raphael
Mesquita, da mostra John Ford. Por isso, minha opinião será necessariamente relativa
e parcial. Segundo, um aparte: em Ford, todos os elogios possíveis não passam
da mais pura verdade.
Não pretendo aqui, no entanto, apontar o
estilo, as características, os mil méritos do cineasta; minha visão é demais
passional – e profissional – para isso, e já produzi um livro-catálogo
de 400 páginas com esse intuito. Sendo assim, só me sobra o relato da
experiência de quem viveu intensamente em um mês os filmes e a obra de Ford. E
é por causa dessa experiência que afirmo o que afirmarei ao longo do restante
desse texto: John Ford só se completa, e se vive, numa sala de cinema.
Peguemos um filme como Depois do Vendaval,
visto três vezes na pequena tela grande do CCBB – duas em São Paulo, uma
no Rio. A reação das pessoas foi, em todas as sessões, a mesma: risos um pouco céticos
no início, moderados no meio, incessantes no fim. Mais do que isso, uma
sensação de pertencimento àquele distante universo irlandês, que resplandece
num Technicolor tão arcaico quanto belo, tomou de forma vertiginosa o público,
que pareceu sinceramente torcer, gritar, participar da grande briga entre John
Wayne e Victor McLaglen que encerra o filme.
O sentimento de comunidade em Ford já foi
muito estudado, e é aqui que pretendo chegar: essa comunidade, seja a de
pequenas cidades no Oeste americano, a de índios sem refúgio, a de passageiros
numa diligência ou a de irlandeses em seu país natal, só se completa quando
nós, espectadores, participamos dela. A comunidade, em Ford, exige a integração
do público.
Ver Depois do Vendaval sozinho, em
frente à televisão, permite certamente apreciar e reconhecer uma
obra-prima do cinema, mas está muito distante de permitir realmente vivenciá-la.
É necessário perceber a risada individual como parte de um conjunto de sons,
distintos e únicos, que ouvimos enquanto rimos, e que nos faz rir ainda mais, sempre
com uma mesma finalidade: a comunhão geral.
Ver um filme de John Ford, o católico
rebelde, é como participar de uma missa herege. Para isso, sua igreja,
obrigatória, é a sala de cinema.
Pensemos nos heróis solitários de John
Wayne, Henry Fonda, Will Rogers, etc. Essa solidão se torna ainda mais profunda
porque nós, espectadores, nunca estamos de fato junto deles, nunca estamos
sozinhos: somos sempre a comunidade que irá recebê-los com certo desdém, aceitá-los
com algumas ressalvas, criticá-los quase sem perdão, e despachá-los quando,
afinal, eles já tiverem transformado nossas vidas, resolvido nossos problemas,
nos ensinado a viver em conjunto. Os heróis de Ford são como os filmes, surgem
e depois se vão, começam e acabam, existem apenas do primeiro ao último plano.
Nós ficamos.
Ver um filme de John Ford na televisão é
estar mais próximo de Henry Fonda do que do bartender de Paixão de Fortes.
Ou seja, é errado.
Assim como o “fantasma” dos heróis de Ford
permanece na vida de seus povos, o fantasma de seus filmes permanece após a
sessão. É inegável a vontade de sair da sala de cinema após cada um de seus
filmes e entoar algumas das típicas canções americanas em coro, encher a cara
de cerveja em um bar, conversar sobre qualquer coisa e até brigar, é claro, por
algum assunto sem importância – todas, sem exceção, experiências
verdadeiramente comunitárias, coletivas. Ao se sair de um filme de John Ford, a
primeira vontade nunca é de se recolher e ler um livro.
Mas como fazer isso sozinho, em casa, na
frente da televisão ou de um laptop? A não ser que consideremos o ato de twittar
a um amigo o exemplo contemporâneo de coletividade, essa é uma experiência já
fracassada antes de nascer.
Se os heróis de Ford têm, no fundo, a
missão de ensinar às comunidades o valor da comunhão, e nós fazemos o papel
dessas comunidades, uma lógica simples se estabelece daí: os filmes de John
Ford são, no final das contas, experiências educativas. É isso, acima de
tudo, o que o configura um cineasta clássico; Ford está sempre nos ensinando a olhar
o mundo. Todo o famoso domínio do cineasta sobre aquilo que filma (o
roteiro, a montagem, os planos, os atores, etc.) serve para não ser reconhecido
como um domínio de autor, pois aqui o que interessa é menos a
subjetividade – seu olhar individual – do que o ensinamento
objetivo: como se ver corretamente.
Um corte, um plano-detalhe ou mesmo um raro
close-up não são assim pensados como marcas de estilo, mas como as únicas
formas possíveis de se filmar aqueles objetos naquele espaço. Não é apenas para
se “defender do produtor” que Ford “cortava na câmera”, certamente, mas porque
filmar de outros lugares, e em outros tempos é, para ele, filmar errado.
Ver o mundo e recortar para o espectador o que realmente importa; existe algo
mais importante do que isso?
Temos aqui outra razão para se ver os
filmes de Ford no cinema: ele não deseja que apreendamos seus ensinamentos de
forma individual, pois se cada um aprender o que quiser quer dizer que ninguém
aprendeu nada, mas que choremos na hora certa, soframos na hora certa,
gargalhemos na hora certa – Ford entende que, para seu projeto de cinema dar
certo, todos os espectadores do mundo deverão ter a mesma reação. E todos
precisarão tê-la como se fosse a reação mais natural, espontânea e simples do
mundo. E assim voltamos à experiência de Depois do Vendaval.
É claro que esta noção passa a ficar um
tanto mais difusa quando o próprio Ford entra em crise com sua própria visão de
mundo, ou seja, quando o sentimento de comunidade tão caro a ele começa a se
esvair, nas transformações do mundo, dos EUA e da velhice pessoal; e assim
explicamos essas obras dúbias e erradas, por mais perfeitas que sejam,
que surgem a partir de Rastros de Ódio, incluindo o próprio: Terra
Bruta, Sete Mulheres ou mesmo O Homem que Matou o Facínora.
Não é impossível que a descrença de Ford em seu projeto maior de cinema se
relacione com a própria ascensão da televisão.
Mas é só ver, ao mesmo tempo, O Aventureiro
do Pacífico, obra de uma falsa senilidade, feita quase como uma
brincadeira, para saber que o velho Ford ainda manteve suas velhas crenças
intactas, por mais que o mundo as impedisse. Na televisão, O Aventureiro do
Pacífico pode passar por um simples conto de Natal. No cinema, é a
afirmação grandiosa e ao mesmo tempo debochada de um projeto de vida.
Lembro-me também de Hitchcock, outro grande
nome recentemente visto no cinema, e marcado igualmente por essa “condução
perfeita do espectador”, mas me parece que existem nos dois algumas diferenças
essenciais, que talvez expliquem melhor o que tento definir aqui. Enquanto Ford buscava sempre no indivíduo a
experiência coletiva, aquilo que o unisse aos demais, Hitchcock, por sua vez,
procurava o que o separa, o que o conduz para dentro de si – seus medos,
anseios, sentimentos profundos. O antagonismo é claro: se Ford vê o cinema tal
qual uma igreja, Hitchcock o entende como uma prisão. Um ensina, outro coloca
em crise.
E há uma segunda diferença, talvez ainda
mais essencial: Hitchcock é um homem de cinema, Ford um homem do mundo.
Pois a problemática do cinema de Hitch
começa por “como posso atingir novamente as profundezas do espectador” e responde-se
com “trazendo algo que ele nunca antes assistiu”. As back projections e
a trilha sonora noise de Os Pássaros, os efeitos óticos de Um Corpo que
Cai, a construção narrativa inusitada de Psicose, os quadros dentro
do quadro de Janela Indiscreta, para ficar apenas em exemplos
ultra-conhecidos, são sempre desafios cinematográficos, muitos deles
absolutamente geniais, que se renovam e evoluem filme a filme. Como um cineasta
clássico, no entanto, todos os estudos de linguagem tinham um objetivo muito
claro: desarmar o espectador comum, atingi-lo sem chance de defesa. Mas, se o
mecanismo de defesa do espectador hoje é outro, a obra de Hitchcock
inegavelmente sente com isso a distância do tempo. Parece-me indiscutível
que, se o velho safado estivesse vivo, iria gostar de refilmar seus filmes um a
um, plano a plano – e não é isso, de certa forma, que Gus Van Sant faz em seu Psicose?
Mas onde fica a linguagem do cinema para
Ford? Sim, ele certamente a dominava como poucos. Sim, ele certamente tinha um
estilo visual específico, que muitos tentaram imitar e ninguém conseguiu. Sim,
os filmes se diferem muito entre si. Por fim, sim, é inegável em todos eles a
presença de construções visuais criativas e inesperadas. Mas, sinceramente,
para o diretor isso pouco importava. O que importava era essencialmente filmar
aquelas comunidades, aqueles territórios, suas histórias, conflitos, dramas e
resoluções. E, principalmente, filmá-los da forma certa, talvez a única
forma certa possível. E por serem tão certos, seus filmes permanecem
assim, quase incólumes ao tempo, até hoje. Não permitem mudanças – sua
forma é eterna.
Não é por acaso que um dos diretores citados
era um aficcionado por storyboards, enquanto outro, mesmo com o filme
inteiro na cabeça, se recusava a sequer fazer uma decupagem. Hitchcock filmava
como quem filma um filme; John Ford filmava como quem anda a cavalo.
É claro que não quero dizer aqui que não
valha a pena se assistir a John Ford na televisão. A mostra acabou há meses,
muitos não puderam ir, sabe-se lá quando os filmes dele estarão disponíveis
novamente no Brasil. Não importa o suporte, ele será sempre um dos grandes
nomes da história do cinema.
Mas, por mais que esse texto tenha em seu
cerne um espírito apaixonado e parcial, me parece um fato concreto que, para
certa história do cinema, estar fora do próprio cinema é cortar uma parte de
tal história. Como o Juiz Priest de Will Rogers ou Charles Winninger, é viver sem
sua dose diária de álcool, sua tão amada mint julep; é poder apreciar o
mundo em toda sua beleza, mas sem reanimar seu coração.
Leonardo Levis
Agosto
de 2011 |