JOHN FORD

A ordem social

Social order can be nothing but an equilibrium of forces.
Simone Weil

Peregrinação, No Tempo das Diligências, Ao Rufar dos Tambores, Paixão dos Fortes, Legião Invencível, O Céu Mandou Alguém, Como Era Verde Meu Vale, Depois do Vendaval, Crepúsculo de uma Raça, Sete Mulheres. Ao lembrar de cada um desses filmes, vem à memória uma composição, um quadro, um cenário, uma paisagem, enfim, uma imagem que beira a perfeição. Um fragmento do mundo visível rigidamente organizado, enquadrado, refletido – mas atravessado pelo vento irracional da natureza e pelas forças contraditórias do homem. O esqueleto geométrico do quadro, o efeito tectônico das composições fordianas remete a uma ordem, uma lei. Entretanto, é preciso notar que não há ilusão de harmonia sendo forjada, e sim a imagem de um mundo repleto de desconcertos.

O rigor composicional expressa a vontade da comunidade de ordenamento e equilíbrio. Mas o caos se infiltra na arquitetura dessa ordem, acha brecha nas fissuras da imagem. A comunidade clama por estabilidade e reprime os excessos que podem colocá-la em perigo, mas a energia alguma hora aflora e arrebenta a parede. Esse momento de ruptura é aquilo que na vida psíquica do indivíduo corresponde ao retorno do reprimido, e que podemos tranquilamente extrapolar para a vida comunitária: os filmes pautados na noção de comunidade constantemente têm seu ponto de conflito ligado a esse retorno do reprimido dentro de uma ordem imposta.

Um dos melhores westerns de John Ford, Terra Bruta, dá uma visão perfeita de tal conflito. Quando a criança raptada pelos índios é reencontrada, a comunidade se apavora ao ver um dos seus transformado em Outro. Em última instância, o que a comunidade produz no indivíduo é a loucura, a histeria, como se observa na personagem que supostamente é a mãe do menino resgatado. Depois que ela é morta, o horror toma conta. O linchamento do menino “índio” em Terra Bruta é uma versão recrudescida do tema de Rastros de Ódio. Nenhum happy end poderá apagar esse pesadelo da vida em sociedade assim revelado.

Ao abordar o imaginário da América dos pioneiros, Ford não cria o retrato ingênuo (ou hipócrita) de um paraíso perdido. Na medida em que se interessa pela comunidade, pela mentalidade coletiva de um grupo, e mais amplamente pela história da nação americana, ele não esquece de trazer à tona tudo que ela interdita e recalca. Não por acaso, o racismo e a intolerância são temas recorrentes em sua obra.

A unidade fundamental da dramaturgia de John Ford não é um homem, mas dois homens (“Two rode together”). Ele filma o convívio, a ordem social e seu corolário, seu equilíbrio de forças.

Ford vs. Hawks

A comparação entre Ford e Hawks é das mais estimulantes. Os próprios filmes incentivam o duelo: O Paraíso Infernal é abertamente inspirado em Asas Heroicas; Hatari! é feito em cima dos mesmos motivos de Mogambo; Rio Vermelho antecipa o tema da velhice que será tônica dominante nos personagens de John Wayne em filmes de Ford a partir de então, tendo o oficial da cavalaria que se aposenta em Legião Invencível e o Ethan Edwards de Rastros de Ódio como os dois capítulos mais importantes dessa odisseia de envelhecimento.

As narrativas de Ford, assim como as de Hawks, se pautam numa alternância fundamental entre itinerância e assentamento, ação e repouso, dinamismo e estatismo, vita activa e vita contemplativa. No nível plástico, Ford expressa esse dualismo na magnífica combinação de plano fixo e movimento. Se os heróis de Hawks sempre optam pela ação, os de Ford estão divididos entre ação e contemplação. Não se pode esquecer, contudo, que contemplar é uma forma de agir: “A contemplação (reflexão) é a primeira relação liberal do homem com o mundo que o circunda” (Schiller).

Ford e Hawks são duas faces do que Hollywood produziu de melhor em seu período áureo. A principal diferença é que em Hawks (sobretudo a partir dos anos 1940) há o predomínio da forma aberta, da energia em tráfego livre, e seu estilo é menos uma escritura do que um modo de focalização dessa energia, ao passo que em Ford a energia se acha capturada na forma, a estilização orienta os planos, a escritura se faz notar, a mise en scène tende ao monumental.

Hawks, cineasta do espaço, do plano atrelado à energia do movimento. Ford, cineasta do quadro, da paisagem transformada em pintura. Há, neste último, uma ascese do espaço pelo quadro.

A moldura

Intérprete da natureza contraditória da vida em comunidade, Ford está interessado na parte que se relaciona com o todo, na precisão do quadro, na qualidade tangível dos elementos heterogêneos que se encontram num plano, na firme ancoragem dos corpos no meio físico à volta deles (sobretudo quando o espaço assume uma função psicológica e dramática, e não apenas cênica). As bordas do enquadramento devem ser demarcadas. A presença do quadro-limite é sensível, pronunciada, pois é justamente ela que nos leva a perceber as relações de força, as relações do personagem com esse espaço criado para ser habitado por ele, as relações dos elementos que se harmonizam e dos que se chocam, as relações entre cores, linhas, corpos que estão em conflito ou em acordo. A moldura, assim, participa da forma.

Ela tem ainda a função de delimitar o espaço plástico do quadro em relação ao nosso espaço de espectador. O mundo da imagem e o do espectador não são o mesmo, não importa o quão convincente seja a analogia. A ênfase na moldura do quadro ajuda a evidenciar essa fronteira. É o oposto de um cinema de imersão onde o espectador não tomaria consciência dos contornos da imagem e perderia – mediante a dissolução da moldura e a implosão do espaço cênico (enquadramentos fechados, pouca profundidade de campo, visibilidade turva) – a noção do limite que o separa do universo ficcional.

Ford, inversamente, obriga-nos a ter uma percepção clara e concreta dos limites (de interpretação, inclusive). O espectador e as imagens ocupam lugares diferentes, estanques. Você vai se emocionar com aquele personagem, com aquele filme, mas em nenhum momento vai deixar de perceber que aquele mundo não é o seu mundo, que os valores pelos quais aquele personagem luta não necessariamente são os seus valores, que o cimento cultural e psicológico daquela comunidade não necessariamente é o mesmo da sua, que os valores morais e sociais que regem aquele universo não necessariamente são os mesmos que regem o seu. Há uma alteridade primordial tencionando a relação entre o espectador e o filme.

Ressonâncias bíblicas

“... as ressonâncias bíblicas na obra de Ford são uma constante e dão pano para mangas que ainda não vi cozidas”, disse João Bénard da Costa.

De fato, tais ressonâncias existem aos montes, a começar pela própria forma narrativa adotada pelo cineasta. Assim como o relato evangélico retoma histórias comuns de homens comuns e as converte em parábolas que visam à revelação do divino no humano e mundano, os filmes de John Ford se dedicam à exposição do mito através das narrativas simples de pessoas simples, enfatizando os gestos e os ritos que constituem a existência daqueles a que Strindberg chamava os “seres humanos do cotidiano, tal como são habitualmente pastores do interior e médicos da província”.

Em A Mocidade de Lincoln, Ford naturaliza o mito lincolniano nas histórias comuns de um homem comum, contadas em sucessivos quadros ou estações que condensam situações exemplares. O estilo digressivo típico de Ford disfarça a presciência do narrador, como se a História – incluindo seu lado trágico – ainda não se tivesse consumado. Mas, na primeira cena do filme, o jovem Lincoln inicia um discurso dizendo: “Vocês que já me conhecem...”. Ou seja, ele e o filme, no fundo, falam a quem já conhece a história. É próprio da parábola não falar senão àqueles que já compreenderam seu sentido. Ela só mostra àqueles que já viram; restitui-lhes a visão ou, no caso dos que não acreditam, a cegueira. Ford se dirige àqueles que já conhecem a história de Abraham Lincoln. Ao fazê-lo, no entanto, coloca em jogo as ambiguidades, os pontos obscuros que tanto a mitologia como a história encobrem. Por exemplo: Lincoln, o unificador da nação, aparece também como o castrador, o porta-voz da Lei intransigente.

Ford deliberadamente constrói o personagem à imagem de Moisés, figura bíblica que sempre retorna em seus filmes, de diversas maneiras, sobretudo ao longo dos anos 1930, desde o cômico “Novo Moisés” de Nas Águas do Rio até o final solene de A Mocidade de Lincoln, que mostra o futuro presidente se encaminhando a uma montanha como se estivesse indo ao Monte Sinai receber os mandamentos divinos. A alusão a Moisés é recorrente na obra do diretor, talvez porque a religião mosaica represente o momento em que surge, na história dos povos antigos, a instância legisladora que recrimina o lado selvagem e instintivo dos homens e prega sua elevação cultural e intelectual, engendrando a dicotomia, que Ford constantemente repõe, entre natureza e civilização.

“O deserto continua o mesmo”

John Ford não filmou apenas nos vales rochosos do Oeste selvagem. Outros cenários lhe foram igualmente queridos, como o verde da Irlanda ou o azul do Pacífico. Ainda assim, foi no deserto ocre de seus westerns que Ford deixou sua marca mais durável. Ao pronunciarmos seu nome, primeiro pensamos no Monument Valley (onde ele rodou sete filmes entre 1939 e 1964), somente depois lembramos do resto. O próprio aspecto monumental do lugar explica a atração que ele exerce sobre o diretor de Rastros de Ódio, provando-se uma geografia naturalmente destinada ao mito. Mais que qualquer outro cenário natural escolhido por Ford, aquele sítio peculiar favorece o enquadramento de uma relação bastante cara ao diretor: a dialética do perene e do transitório, que em termos visuais se traduz de modo simples, pela presença de homens em primeiro plano e rochas impassíveis ao fundo, ou diligências cruzando em diagonal um quadro rigorosamente fixo, linhas moventes traçadas na paisagem estática.

O tom predominante nos westerns de Ford é a melancolia, a consciência de que o mundo do faroeste é um mundo já excluído da realidade – o que sobreviveu foi a lenda. Pouco a pouco, as famosas esculturas naturais do Monument Valley vão se tornando as pedras tumulares do Oeste americano. Um mundo que desaparece e carrega consigo tanto caubóis solitários quanto povos inteiros dizimados (a exemplo dos Cheyennes cujo crepúsculo será tema de um dos últimos filmes de Ford). Resta o autismo do reino mineral, o deserto que conserva em seu silêncio os testemunhos – heróicos, mitológicos, violentos, dolorosos – do passado da América.

Ford traz uma visão poética – talvez a mais poética de toda a história de Hollywood – dessa melancolia originária do western, gênero encarregado de ecoar as lendas, as melodias, os gestos e os eventos que constituem a potência mítica do Velho Oeste, universo tão próximo e tão distante, que desaparece enquanto tal (território selvagem anterior à Cultura) mais ou menos na mesma época em que o cinema desponta no horizonte (o fim da Conquista do Oeste coincide com o nascimento do cinema). A história do western é a história de um ocaso cada vez mais evidente; sua imagem crepuscular surge muito cedo, ainda no cinema mudo, bem antes, portanto, de Sam Peckinpah e Clint Eastwood.

O filme em que John Ford reflete mais explicitamente sobre a história e a mitologia do faroeste, como todos sabem, é O Homem que Matou o Facínora. A narrativa, que se desenvolve majoritariamente em flashback, começa com a volta de Hallie (Vera Miles) e seu marido Ransom (James Stewart) para a pequena cidade de Shinbone, onde o passado dos dois está guardado como um segredo (dir-se-ia como um túmulo). O motivo da visita é o enterro de Tom Doniphon (John Wayne), que morreu sozinho e esquecido. Tão logo descem do trem, Hallie e Ransom encontram o ex-xerife da cidade, agora velho e cansado. Olhando ao redor, Hallie comenta as mudanças que ocorreram na cidade desde que ela e Ransom saíram de lá. O ex-xerife, então, contrapõe: “O deserto continua o mesmo”. As pessoas vão e voltam, a cidade progride, o espaço social muda; o deserto não se altera.

Apesar da frase lapidar dita pelo ex-xerife, que resume a lógica de representação do deserto no cinema de John Ford, O Homem que Matou o Facínora é um filme prioritariamente de cenas de estúdio, de interiores, praticamente ignorando os amplos espaços abertos outrora tão presentes. Por conseguinte, a dialética entre o deserto imutável e o progresso civilizatório deverá se inscrever de outra forma que não a composição plástica do quadro. Essa dialética irá se transferir para os corpos dos atores, tal como se configura na cena em que Ransom, Tom e Liberty Valance (Lee Marvin) se enfrentam no restaurante. Valance coloca o pé na frente de Ransom, que tropeça e cai no chão junto com a bandeja que carregava. A queda é desconjuntada, Ransom se desmonta, braços e pernas se desarticulam do tronco. James Stewart faz uso completo de sua flexibilidade corporal, aquela capacidade que ele tem de fazer seu corpo parecer se desmembrar, se desmantelar, algo que sempre caraterizou sua atuação física (e não só: basta pensar no desmantelamento psicológico de seu personagem em Um Corpo que Cai). Tom se levanta para intervir em defesa de Ransom. Ao contrário de James Stewart, John Wayne posta-se como um bloco largo e robusto à frente de Lee Marvin. Wayne se impõe como um monolito, uma rocha irremovível. Somente a lenta erosão do tempo pode modificá-lo. O hieratismo de Wayne se contrapõe à maleabilidade de Stewart – outra forma, para Ford, de apresentar a oposição entre fixidez e movimento.

Tom Doniphon, ao morrer, se soma aos demais vestígios do extinto mundo do faroeste, como já se podia entrever em sua última aparição no filme, na cena em que revelava para Ransom a verdadeira história por trás da morte de Liberty Valance – aconselhando-o, contudo, a não apenas manter a farsa como ainda promover-se em cima dela (toda a carreira política de Ransom se montaria a partir da fama adquirida ao ser creditado como o homem que matou Liberty Valance). O personagem de Wayne conscientemente se apagava sob a História. Sua aparência física naquela cena já dizia tudo: rosto sujo, expressão petrificada, pele começando a rachar – um corpo já em processo de fossilização.

Elogio da liberdade

Depois de desmontar a engrenagem do mito do western em O Homem que Matou o Facínora, John Ford embarcou para o Havaí e realizou O Aventureiro do Pacífico, cujo título alternativo poderia ser “As férias de verão do tio Ford ao lado de seus amigos”. Em clima de celebração, Wayne e cia curtem um dos momentos de maior mestria formal e liberdade criativa do diretor. O gesto mais calculado e o mais gratuito se tornam uma única coisa inseparável. Os principais motivos fordianos ressurgem num contexto novo. A tempestade, a visita à lápide, a festa comunitária, a forma como um grupo social elege seus líderes, a tensão entre indivíduo e comunidade, nada ficou de fora.

Um filme natalino de John Ford, um elogio das cores. Os esquemas patriarcais-autoritários marcam presença, impostos pelos colonizadores, mas amenizados por um espírito de conciliação. Geralmente, num filme de Ford, quando alguém desponta no horizonte é para trazer problemas, ou para trazer de volta um passado que ficara silenciado no fora-de-campo. Aqui, Lee Marvin, o “facínora”, chega de barco e é saudado por toda a ilha, numa dança coletiva multicolorida que parece tirada de um musical da Fox dos anos 1950 (Ao Sul do Pacífico, por exemplo). Depois ocorre aquela pancadaria no bar, que já é uma tradição local protagonizada por ele e Donovan (Wayne). A briga não é um acerto de contas, apenas um ritual dramatúrgico, uma maneira de sacramentar, ano após ano, a fraternidade totêmica que eles formaram ao se instalar na ilha. Quando o médico – um novo Dr. Bull que está sempre se sacrificando pelo bem coletivo – aparece para dar uma bronca e acabar com a briga, não é porque precisa restaurar uma ordem ou uma hierarquia, mas antes porque o seu esporro também faz parte do ritual. A ordem apenas disfarça uma anarquia benéfica, um caos abençoado onde convivem homens, máquinas e deuses.

A Igreja está lá, mas a verdade nativa da ilha é o panteísmo pagão. O sol e as montanhas são as verdadeiras divindades às quais o filme presta tributo. As forças da natureza atuam o tempo todo, ora reprovando as atitudes dos personagens (o trovão que recrimina um palavrão proferido pelo padre), ora banhando em sua luz eterna aquele paraíso ensolarado que, imperialismo e racismo à parte, mostra-se o palco ideal para John Ford encenar o prenúncio de um repouso merecido (ele encerraria a carreira dois anos depois). O Aventureiro do Pacífico, ou a liberdade conquistada.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


 Julho de 2011