Falar sobre John Ford é inofensivo?
Acompanhar uma retrospectiva dele significa o acolho da casa do mestre onde se
isola a dúvida e a impertinência? É o risco, sem dúvida, de um evento cultural que
restabelece o passado e reforça o cânone.
Mas John Ford ainda vive, isso é claro.
Peguemos Ao Rufar dos Tambores (1939): Gilbert (Henry Fonda) volta à
casa após uma batalha que não presenciamos, e ele está exausto, ferido, até
febril pela chuva torrencial que o abateu durante seu regresso; a casa onde
mora e trabalha está abarrotada de gente, outros guerreiros também exaustos,
feridos, baleados e encharcados pela chuva; mulheres tentam dar atenção a todos
e transitam em desespero pelos cômodos; pela janela, percebemos que a chuva
permanece furiosa. Dentro desta sequência, há um plano em particular, um
registro sem cortes durante três minutos, fragmento que eu não vou mais
esquecer e que, paradoxalmente, sempre vai me surpreender toda vez em que
assisti-lo. Gilbert está deitado no chão, com um olhar imóvel ao além, relatando
sem cobrar por nenhum ouvinte a batalha que não vimos, sem outra condição senão
falar a esmo sobre esse passado que não volta. Lana (Claudette Colbert),
desesperada pela debilidade do marido (e suas palavras tão fortes, tão vividas,
parecem torná-lo mais débil e mais fraco), agita-se sem parar, mas não conseguindo
realmente remediar a situação. Ela entra e sai de quadro, assim como Adam Hartman
(Ward Bond). Podemos querer ser os ouvintes de Gilbert – ele tão distante
de nós; nós que não poderemos ajudá-lo e que não sabemos o que ele experimentou
no campo de batalha –, e descobrir, dentro da calamidade em que se
encontra a casa, enunciados de uma vitória inesperada, cujo triunfo jamais nos atingirá
e cujo orgulho daqueles que a pronunciam se confunde com a febre mais intensa.
Mas também podemos não escutá-lo e, como Lana, testemunhar de Gilbert somente
um rosto pálido, o olhar ao vazio, a qualidade de uma voz seca e sempre no
mesmo volume. Podemos também nem vê-lo e nos concentrarmos nos esforços de
Lana, seus gestos dispersos, a efervescência de quem não escuta o marido
exatamente para tentar salvá-lo. Mas o que é mais surpreendente é que podemos
não nos ater nem a Gilbert, nem a Lana, nem a Adam (que também examina o estado
de Gilbert), mas nos fixarmos no fundo do quadro, em outros enfermos, outras
esposas desesperadas, e a chuva que não para...
É que, para Ford, o espaço precisa ser
ocupado, todo ele e sem lacunas, por seres humanos. Olhamos para todos os
lados, sempre com atenção total, e só vemos pessoas, moribundas ou frenéticas,
a mostrar que vivem, que não fazem outra coisa senão viver. É o que Gilbert nos
diz: mais do que ganhar, ele viveu, atirou em alguém e permaneceu vivo. E é
assim também com Ford no seu campo de batalha, o set de filmagem que demarca
as fronteiras perante a montagem, é o shot da câmera que dispara tal
como uma arma, cara-a-cara com o espectador a afrontá-lo para que testemunhe
– em qualquer parte do quadro, em qualquer segundo do longo plano –,
testemunhe alguma coisa, alguma coisa que seja.
Espero não estar sugerindo, no entanto, que
em um filme de Ford o espectador passeie o olhar de maneira indiferente e
desorganizada. Não se trata da soberania de um espaço total que acolhe e
minimiza os homens. Ao contrário, toda a nossa atenção despenca para as reações
sempre tão inesperadas e tão próprias de cada pessoa, como se estas reações se
fechassem dentro de cada um, como se, para essas reações, nem houvesse
possibilidade de consequências. Peguemos outro momento do filme, o pavor de
Lana da primeira vez que vê o índio Blue Back: isso não é preconceito, é
aflição; antes de ser um preconceito, é a forma que o preconceito
assume. E esta forma são sempre desesperos, sobressaltos, agonias em intensidades
que nos retiram qualquer impulso de condenação. O que não quer dizer que Lana
passe incólume; ela leva uns bons tabefes do marido. Ou seja, o mundo não se
paralisa de fato por estas pessoas e seus gestos mais particulares são
compensados por outras reações igualmente inesperadas. Como no plano-sequência
do início do texto, o que vemos é essa continuidade ininterrupta dessas reações
em sua brutalidade e individualidade, é o afeto e o abismo de cada afeto,
espaço ao mesmo tempo individual e coletivo, pessoas ao mesmo tempo fechadas e
abertas aos outros.
Ao Rufar dos Tambores é todo assim: um acúmulo de gestos, de gente entrando e saindo de
quadro, movimentando o mundo, e este em uma sucessão incontornável de
acontecimentos que não preparam ou antecipam o que está por vir. Se os ataques
dos índios vêm após momentos alegres e tranquilos da comunidade, isso não quer
dizer que o arco dramático desenhe uma curva que vai da harmonia à tensão
– ao contrário, quer dizer que a harmonia e a tensão ocupam o mesmo
espaço, um na espreita do outro. Gilbert e Lana trilham por este mundo, se
entregando ao andamento imprevisto das situações: a estranheza de Lana à rusticidade da
casa campestre, seguido da perda da terra em que se assentaram, até finalmente
a progressiva entrega com que Gilbert, e depois até Lana, se submetem à guerra.
Uma entrega que não é resignação ou subserviência, ainda que também esteja
longe da resistência valente e tenaz à la Raoul Walsh. É que esta doação
dos personagens é o encontro entre o acossamento e a agitação, o espontâneo e o
claustrofóbico, resumo de uma busca sofrida pela sobrevivência em um mundo sem
destino ou prenúncios. Para Ford, os homens lutam até quando estão a fugir da
sua própria casa ou são fracos e aterrorizados mesmo após o brilho de uma
vitória. Só não são preguiçosos ou apáticos, isso nunca. Agitados,
extrovertidos, seus gestos sempre amplos e efervescentes, a poesia de Ford se
esforça para que cada cena exija tais qualidades, seja na batalha da
nação ou na intimidade de um casal em casa.
João Gabriel Paixão
Agosto
de 2011 |