A DIVERSIDADE DE FORD

bem além da inspiração, expressividade e precisão das imagens ou as distâncias a partir das quais Ford filma cada instante, independentemente da simplicidade ou da originalidade das histórias que Ford tece ou do tom épico e lírico que ele as concede; mesmo acima do efeito subliminar do impacto que o conjunto de luz, sombras, cores, vozes e música tem sobre cada espectador, dos olhares e gestos dos atores, seus movimentos ou dos movimentos de câmera, alem da utilização econômica e magistral de Ford de todos os recursos disponíveis no cinema, o que realmente nos emociona em seus filmes é a verdade dos personagens.” Miguel Marías 1

Além da importância de ter trazido pela primeira vez ao Brasil uma quantidade significativa dos filmes de John Ford em película, a retrospectiva organizada no CCBB ano passado teve uma felicidade a mais: em parte pelo recorte, em parte pela programação, ela reforçou o fato de que não se vê direito um filme de Ford sem antes procurar desvencilhar-se das armadilhas do autorismo, esse vício terrível compartilhado pela grande maioria dos cinéfilos. Neste caso, é preciso aceitar uma certa inacessibilidade do cineasta – como diz Miguel Marías, “porque ele (Ford) geralmente não dá voz a suas próprias opiniões”. Mais do que isso, Ford sempre soube impor obstáculos àqueles que acreditavam conhecer seu pensamento, suas convicções – sendo os exemplos mais sintomáticos o do católico que filmou Sete Mulheres e o do “conservador de direita” que adaptou Steinbeck para o cinema.

Com freqüência essa característica desorientou a critica, não apenas pela complexidade da visão de mundo (sempre polifônica) apresentada nos filmes e através deles, mas pela dificuldade em se conhecer até mesmo suas convicções cinematográficas. Se sabemos que Ford era extremamente seguro naquilo que filmava e ciente, como poucos, de seus efeitos, não devemos deixar de perceber que seus filmes são com freqüência movimentados por uma diversidade de vontades, entre as quais algumas que muitas vezes nosso vicio dissecatório costuma isolar em polos opostos, e a maneira como elas se complementam nessa obra talvez componha a sua face mais fascinante. Por isso pode ser então interessante acessá-la não pelo percurso da regularidade e das certezas, mas sim partir da dúvida, das contradições, buscar o componente dialético da obra de Ford – justamente aqueles momentos em que ela parece hesitar entre uma proposição e outra.

Podemos supor que a dinâmica de boa parte de seus filmes poderia ser entendida superficialmente pelo clichê realismo x formalismo. De um lado, o cineasta profundamente arrebatado por Aurora, que desde então não saberia filmar um único plano sem pensar minuciosamente na disposição dos elementos e atores no espaço e na luz, sua coreografia em relação à câmera e seu movimento próprio (ainda que seja sempre um trabalho em direção ao centro da cena, onde a câmera finalmente assume um lugar discreto); de outro, o documentarista, verdadeiramente preocupado com a vida de seus personagens a despeito do recorte narrativo dos filmes, com sua forma de pensar e viver, com a poeira que envolve seus corpos saídos do deserto.

Mesmo que isolássemos da discussão as questões diretamente relacionadas ao dispositivo e nos concentrássemos apenas na construção que ocorre no interior do plano – o que se passa com os atores e o que eles dizem, veríamos que a manifestação das vontades distintas do cineasta permaneceria existindo, talvez de forma ainda mais contrastante. Terra Bruta é um filme no qual tais contradições (entendendo-se essa palavra sempre como algo positivamente dialético) estão mais radicalmente expostas, em particular pelo revezamento de excessos e rarefações dramáticas. O mesmo filme que em certos momentos ambiciona uma aproximação com o melodrama terá também seus tempos anarrativos, pouco funcionais desse ponto de vista.

Tag Gallagher2 diz que se Ford não foi o fundador da técnica da memória alucinatória no cinema, certamente ele proporcionou o seu mais impopular emprego em toda a história de Hollywood. O critico se refere ao longo monólogo de Henry Fonda em Ao Rufar dos Tambores, no qual seu personagem narra os horrores vivenciados na guerra em um quase plano-sequência de três minutos, para o desespero de seus produtores e de grande parte do público. De cara, podemos pensar em duas repetições desse mesmo recurso – em O Céu Mandou Alguém, quando o personagem de John Wayne explica a seus comparsas o que viu na diligência saqueada onde foi buscar água, e em Terra Bruta, quando à beira do rio McCabe conta ao Tenente Gary o porquê de ter abandonado sua vida confortável de xerife para acompanhá-lo numa missão do exército. Embora os três planos tenham finalidades muito próximas, este último se difere ligeiramente dos outros pelo fato de que dificilmente, caso fosse descartado (todos sabem que os produtores de Ford jamais tiveram esse poder de veto), precisaria ser substituído por outro recurso narrativo, como o flashback, justamente por ser uma espécie de sobra, que existe daquela maneira unicamente porque Ford era um diretor excepcionalmente sensibilizado pelos seus personagens, que fazia questão de expor suas biografias, fossem elas necessárias ou não à narrativa. O que poderia ser resumido em poucas palavras transforma-se numa grande história paralela da qual podemos imaginar os mínimos detalhes – em vez de simplesmente assumir que não quis se casar, o personagem de James Stewart faz um longo e digressivo percurso até admitir o nó na garganta que sentiu quando Belle Aragon, a dona do bar com quem tinha um caso, começou a chamá-lo de Guth.

Esse impulso de documentarista, o interesse particular pelas histórias paralelas de seus personagens, notamos senão em todos, na grande maioria dos filmes de Ford. Miguel Marías relembra o momento de Paixão de Fortes em que Wyatt Earp pergunta ao bartender se ele já se apaixonou, ao que o personagem responde “Não, sempre fui bartender”, fala a partir da qual é possível imaginar a vida inteira daquela figura até então absolutamente secundária (ainda que se trate, na prática, de uma gag sobre a insipidez dessa biografia). Podemos também recordar a troca de olhares entre Ethan Edwards e sua cunhada quando ele retorna para casa na sequência inicial de Rastros de Ódio – Ford não quer fazer do possível romance que houve entre os dois uma trama (narrativamente, ela não seria tão essencial), mas faz questão de manter a tensão pelo simples fato de que seus personagens necessariamente têm de ter um passado que se impõe sobre suas presenças e seu modo de agir, passado este que, explicitado ou não, desequilibra as relações do presente narrativo. Basta lembrar do laconismo com que o diretor resolve a trama de Doc Holliday e Clementine. Ford recusa assim o papel do falsificador, que subjuga o que é posto em cena e o papel que cada personagem deve desempenhar dentro dela em função de uma história ou idéia central. Poderíamos fazer uma listagem infinita de seus personagens mais autênticos – com especial destaque para cada membro da família Joad.

A questão a se observar é que, na obra de Ford, muitas vezes o minimalismo dramático que conduz certas tramas e rege a interpretação dos atores contrasta em absoluto com seu duplo positivo – um excesso que não teme a sua própria violência e que passa não só pela direção do elenco, como pelo uso da música e pela montagem. Em Terra Bruta, a coexistência desses dois padrões desconcerta qualquer tipo de predisposição. Toda entrada em cena do personagem Running Wolf, ex-cativo tornado comanche que assassina sua nova mãe branca, causa sempre uma espécie de choque e perturba propositalmente a ordem natural fordiana (como perturba a ordem natural da comunidade anglo-americana na qual é obrigado a viver), uma vez que sua interpretação é mantida vários tons acima do padrão dos atores de Ford. Embora este seja um exemplo limítrofe, adiciona-se aí a problemática da diferenciação que Ford fazia ao representar os brancos e os “outros”, chegando a extremos como em Sete Mulheres, no qual o exército comandado pelo mongol Tunga Khan surge praticamente como uma massa acéfala em oposição aos americanos civilizados (mas não tanto assim, uma vez que a dialética fordiana interdita esse tipo de maniqueísmo). Crespúsculo de uma Raça é, por sua vez, uma prova de que a distinção que o cineasta deliberadamente perseguia quando filmava os indígenas não necessariamente procuraria desqualificá-los.

John Ford é um herdeiro direto de Griffith em várias instâncias, com a evidência desses ecos no trabalho de caracterização dos personagens, e, de maneira mais ampla, por sua vocação ao melodrama. As figuras polarizadas da femme fatale morena e da boa-moça loira para casar que disputam a atenção de Doc Holliday são exemplos claros dessa aproximação de gênero, mas poucas vezes ela se manifestou com a mesma intensidade que em Terra Bruta. Quando McCabe decide trazer consigo após a missão de resgate aos cativos Elena de la Madriaga, ex-mulher do líder comanche Stone Calf, morto pelo xerife, há uma mudança substancial de tom. Elena é mexicana e não havia sido listada pela comunidade anglo-descendente entre os cativos que desejavam ter de volta em sua convivência. Rapidamente ela entende que sua presença não é bem-vinda e que as outras mulheres estão mais interessadas em conhecer os detalhes sórdidos de sua convivência com os comanches do que em reintegrá-la. Desde o primeiro contato com aquele ambiente, sua expressão e sua voz demonstram angústia constante, reforçada sempre pela música. Na sequência do baile, em que a situação chega ao limite quando Elena é ignorada pelos oficiais e abusada pelas mulheres, Ford a filma em planos fechados com duração acima do comum, repetindo-os na montagem como se quisesse forçar ainda mais a sensação de incômodo.

Tais estratégias são pouco comuns no cinema de Ford – se lembrarmos do silêncio e da discrição com que ele filma o tiroteio do Ok Corral, clímax de Paixão de Fortes, fica evidente que não se trata exatamente de um cineasta do excesso. Sua declaração, em entrevista à Cahiers du cinéma 3, de que era contrário ao uso invasivo da trilha sonora é igualmente denunciadora desse apreço pela economia dos meios. No caso específico de Terra Bruta, no entanto, é difícil imaginar a cena do baile de outra maneira, e poderíamos dizer que ela não teria contornos mais realistas caso fosse enxugada de suas intensidades. Elena traz em relação ao restante da comunidade diferenças no modo de se expressar e de falar, não apenas dentro das situações de angústia. Ora, no mundo de Ford, toda diferença é cultuada, é motivo de reverência, como no caso de Elena, que sem dúvida emana mais luz se comparada às outras personagens femininas do filme. Ford podia não conhecer nada da cultura mexicana, mas talvez soubesse fazer do que entende de seu espírito a matriz dramática das cenas protagonizadas por Elena. Se há uma mudança de tom, é porque há uma adesão do filme ao seu ponto de vista, e assim, de certa forma, com todos os personagens.

É através dessa multiplicidade de perspectivas, dos paradoxos e das dialéticas que podemos encontrar as mais justas chaves de análise para o cinema de Ford, assumindo que podemos falar dele sem necessariamente comprometer-nos com certezas, que vêm acompanhadas sempre pela sensação de que algo nos ultrapassa. O que faz de Ford um grande é justamente a maneira como ele organizava essas diferentes propostas de maneira não-excludente e sabendo muito bem o que queria, obedecendo apenas a uma única lei muito particular: pensar acima de tudo nas condições próprias dos mundos, das histórias e dos personagens que registrava. Eram essas condições, no limite, que orientavam como filmar tais objetos e não o contrário (câmera e narração se impondo sobre o universo diante delas). Talvez o ímpeto demiurgo de Ford, finalmente, tenha sido muito mais democrático que se imagina.

Alice Furtado

1. Em "A Profunidade de Ford”, texto que integra o catálogo da mostra John Ford.
2. http://www.sensesofcinema.com/2005/feature-articles/straubs/
3. John Ford (Editions de l'Etoile/Cahiers du cinéma 1990), org. Patrice Rollet e Nicolas Saada


 Agosto de 2011