I A MAN
I a Man, de Andy Warhol e Paul Morrissey, EUA, 1967

Corpos apolíneos

A montagem sincopada e em flashes, mais do que compor algum tipo de atração, trabalha aqui desconstruindo a narrativa – ou o que poderia haver dela. A precariedade da edição nos ajuda a acumular as imagens na mente, uma vez que se sabe que a memória trabalha por meio de flashes: aqueles pés, aqueles corpos esplêndidos – Warhol os filma como esculturas divinais modernas. Ele não quer extrair nenhuma reflexão filosófica daquelas imagens, mas apenas fixá-las – produzir uma imagem que não morra, que se mantenha viva ao longo do tempo. Quantos filmes na história do cinema são capazes de nos oferecer imagens ainda vivas? Quantos filmes contemporâneos nos apresentam imagens mortas já desde o primeiro segundo de projeção? Todos?

Este laboratório de Warhol (que aqui assina a direção com Paul Morrissey) tem funcionamento relativamente simples: câmera, semi-atores, uma boa dose de improviso. Não existe nada a ser dito, é preciso apenas que o corpo se expresse: voz, pele, posicionamento – sentado, deitado, de pé. Um homem (Tom Baker) interage com oito mulheres diferentes ao longo de esquetes separados. Eles ficam num meio caminho entre seduzir-se e travar um conhecimento banal. Começamos com a moçoila que teme a chegada dos pais, passamos a outras jovens modeletes, ícones da Factory como Ingrid Superstar e Ultra Violet, Nico, uma lésbica feminista (Valerie Solanas) e uma mulher casada.

Os estereótipos encarnados pelas mulheres são apenas um finíssimo fio condutor da narrativa. Não é a intenção de Warhol expor um conjunto de variações comportamentais de homens e mulheres, mas buscar um tecido fundamental na relação entre o masculino e o feminino. Tom Baker serve ao filme como um ideal monolítico de masculinidade – ao contrário das mulheres do filme, ele não tem particularidades. Baker é uma espécie de fio-terra, uma superfície condutora que sustenta a narrativa e à qual as personagens femininas constantemente aderem e repelem. É esse contato entre as superfícies que interessa a Warhol. Como em basicamente todos os seus filmes, há aqui um mergulho brutal na matéria, porém no sentido de uma adesão total à superfície – pois é justamente essa superfície, esse tecido, o substrato material das relações entre os gêneros, que o filme procura captar e observar com um distanciamento analítico (daí a ideia de laboratório, que cabe em alguns filmes de Warhol).

Esse tecido essencial da relação masculino/feminino é algo que evidentemente envolve o sexo, mas que frequentemente também o ultrapassa e o exclui (em um momento do último esquete, o maior deles, Tom e Bettina Coffin buscam explicações de por que não se sentem exatamente atraídos um pelo outro). Na realidade, é curioso que se refira ao filme como uma peça de sexploitation, uma vez que todas as cenas do filme se passam rigorosamente antes ou depois do ato sexual. De certa forma, é como se esses momentos pré e pós transa, que beiram e ao mesmo tempo excluem o ato sexual em si, momento de relaxamento dos corpos, acabassem por melhor revelar um repertório expressivo e negociatório dos gêneros.

Baker não tem truques na manga para seduzir as mulheres. Ele apenas se coloca, expressa certos traços e atributos de sua masculinidade. Um homem e uma mulher são confinados na imagem: sem terem muito o que dizer um ao outro, resta aos corpos apenas a pura expressão. O corpo que tagarela sem dizer propriamente nada, que se exibe e se posiciona determinada forma em relação ao outro e em relação à câmera.

É preciso incluir de vez Warhol no hall dos grandes cineastas da história do cinema. É preciso parar de enxergar seus filmes como “obras marginais”, “experiências minimalistas” ou qualquer outro rótulo jornalístico que sirva apenas para enquadrar os filmes, mantendo-os à sombra de sua carreira como artista plástico. Filmes como I a Man, Beauty #2, Chelsea Girls, entre outros, são manifestações pungentes de uma consciência absurda da imagem cinematográfica e seus meios técnicos – talvez fosse preciso ainda escrever um outro texto sobre o papel dos materiais cinematográficos, do aparato técnico, no cinema de Warhol (sendo o rolo de filme a parte mais visível deste aparato, mas não a única). Uma consciência aliada um senso de delicadeza, um prazer da imagem, uma cautela no sentido de preservá-la, fixá-la, algo que pode soar surpreendente se levarmos em conta o contexto um tanto caótico em que seus filmes foram produzidos – são mais de 60 títulos num período de apenas seis anos. Talvez porque o cinema, para Warhol, nunca tenha sido de fato um fim, mas apenas um meio, um medium: meio de fixação e reprodução de imagens – este traço incontornável do cinema que grande parte dos cineastas, por ignorância ou presunção, negligenciam em busca de um resultado final bem acabado e mortificado.

Calac Nogueira

 Agosto de 2011

 
 





iaman3

iaman1

iaman2

iaman4

Stephanie Graves: I don’t think you love me.
Tom Baker: No, I don’t think I do.
SG: Why can’t you fake it? Everybody else fakes it.
TB: No, baby, I don’t think I love you.
SG: Well, there’s must be something about me,
something to you.
TB: Yes, there is something.
SG: What would you call it?
(…)
SG: Do you love my back?
TB: Yes, I can say that.
SG: Ok.
TB: Is that enough?
SG: It’s a beginning.