A mesma verve sarcástica e provocadora que
marcou a obra de Luc Moullet cineasta está também presente em seus escritos críticos
e teóricos. Oriundo do mesmo caldeirão cinéfilo de Godard, Truffaut, Bazin,
Astruc, Cocteau, Rivette e companhia, Moullet começou a escrever críticas para
a revista Arts, juntamente com alguns dos seus colegas nouvellevaguistas.
A passagem para os Cahiers du Cinéma se deu, então, naturalmente, embora
sua estreia nas páginas da revista só tenha se dado em 1956, cinco anos depois
da sua criação.
Moullet foi membro da redação da “revista
da capa amarela” por mais de 50 anos, ficando ausente somente entre 1969 e 1982
(“tinha dificuldade de trabalhar somente no espírito de culto a Karl Marx”, escreveu
anos mais tarde). Nesse meio século, viveu anos-chave para o cinema mundial, sobretudo
de 1959 a 1960, quando a atualidade cinematográfica tinha a responsabilidade de
lidar com filmes que passaram para a história do cinema como monumentos (Os
Incompreendidos, Hiroshima Mon Amour, Um Corpo que Cai, Acossado, Aventura, Psicose). Não é exagero, então, dizer que Moullet viveu
a fase de mitificação de alguns autores, correndo sempre o risco de valorizar
filmes menores e de passar batido por obras recuperadas posteriormente.
Foi o caso da obra de Douglas Sirk, nome
central dos melodramas dos anos 50, cineasta cultuado mundialmente, cuja obra
foi objeto de homenagem da parte de Fassbinder, François Ozon e Todd Haynes. De
Sirk, Moullet diz que “o alcance da obra, no nosso mundo, é limitada”. Sobre Imitação
da Vida, sem dúvida um dos maiores filmes de Sirk, Moullet garante ser uma
obra que “provavelmente não sobreviverá a seu diretor ... um filme esquecivel”
e que Sirk deveria “se apressar a trabalhar seriamente se quiser se tornar
imortal”.
Se comecei esse artigo por um “erro” de
apreciação crítica de Moullet, é para
reforçar seus “acertos” e a defesa
sistemática que ele fazia de autores com pouca visibilidade ou
negligenciados pela crítica como Edgar G. Ulmer, Mario Bava ou
Bertrand Tavernier – até Jorge Furtado ganhou um artigo
elogioso do crítico sob o título “o alferes de
Porto Alegre”.
Moullet é, antes de tudo, um anarquista,
que apresenta seus dogmas para, logo depois, destruí-los. “Eu abomino o western,
por isso que adoro Rio Bravo”, escreveu ele, dando prova da contradição que
alimenta seu discurso crítico. As farpas de Moullet não pouparam nem os filmes
mundialmente incensados como Intriga Internacional, de Hitchcock, que o
crítico considera “como entretenimento, em oposição a Um Corpo que Cai,
que é um filme sério. Os personagens têm consistência no segundo e nenhuma
consistência no primeiro, ou mais exatamente, a paródia da paródia da consistência
que eles possuíam em Um Corpo que Cai”. Mas a maior contradição defendida
pelo discurso crítico de Moullet foi a reivindicação de que os primeiros filmes
de Godard, sobretudo Acossado, eram calcados no realismo. “Como na
obra de Cocteau, encontramos, por intermédio do artifício mais violento, o
realismo e, acima de tudo, a poesia”. Afirmar que um filme que passou para a
história como um dos grandes momentos de desafio do ilusionismo do cinema clássico
através de efeitos narrativos e plásticos é, no mínimo, instigante. É essa veia
de crítico que-vai-contra-a-corrente – mesmo que nem sempre tenha razão
– que Moullet cultua há mais de 50 anos.
Mesmo querendo sobretudo falar bem dos
filmes (“uma critica não é feita para criticar, falemos do melhor”), Moullet não
foi um crítico bonzinho, longe disso. Dentre os seus desafetos, está uma parte
da crítica macmahonista, grupo “rival” dos críticos do Cahiers, cujo
nicho simbólico era a revista Présence du Cinéma, depois Positif.
Não é por acaso que os filmes de Moullet passam em brancas nuvens nas páginas
dessa última, quando não são atacados frontamente, assim como a figura do
diretor, um “cineasta sobre o qual não temos nada a dizer” (Positif n°
49, p. 54). Bem mais tarde, Moullet escreveria um artigo para Positif (janeiro de 2006, sobre King Vidor), pregando que a revista teria melhorado com
o tempo e que os insultos trocados pelas duas estava fora de moda. Os comentários
ácidos de Moullet não poupavam também alguns cineastas, como Pierre Clément (O
Sol por Testemunha) (“não considero-o um grande diretor, nem mesmo um
diretor ... é uma criatura desprovida de personalidade”) ou a unanimadade crítica
que representa o cinema de Pedro Almodóvar (“os filmes de Almodóvar são mal
concebidos, mal organizados, excêntricos, desequilibrados”). Moullet sentia-se à
vontade até para criticar o sacrosanto lugar da cinefilia mundial, o Festival
de Cannes, verbalizando uma impressão que qualquer crítico tem depois de passar
pela Croisette: “o prêmio de mise en scène é dado ao melhor filme da
competição; a Palma de Ouro recompensa uma obra da qual a mise en scène é
inferior e o estilo acadêmico”. Se olharmos alguns dos laureados de ambos os
prêmios nos últimos anos (3 Macacos, mise en scène e Entre os
muros da escola, Palma / Caché, mise en scène e A Criança,
Palma / Exilios, mise en scène e Farenheit 911, Palma / Mulholland
Drive, mise en scène e O Quarto do Filho, Palma), vemos que
Moullet não estava completamente equivocado.
Nas páginas da revista amarela, Moullet
teve a oportunidade de fazer não só críticas de cinema mas também teoria pura. “A
moral é uma questão de travellings”, foi a máxima que o celebrizou e foi
recuperada, mais tarde, por Godard e Rivette para discutir cinema e ideologia
nos anos 60. Mas foi a partir da Trafic, revista de teoria e história criada
por Serge Daney e Jean-Claude Biette nos anos 90, que o cineasta-crítico pôde
exercer mais à vontade sua veia teórica.
Pensar estéticamente o trabalho dos
atores
A obra teórica mais importante de Luc
Moullet teve seu germe nas páginas dessas duas revistas, mas consolidou-se por
outros caminhos, como um livro de teoria independente, o Politique des
acteurs (Política dos Atores), lançado na França em 1993 e inédito no
Brasil. Aproveitando o escopo de análise dos seus colegas de Cahiers dos
anos 50, Moullet transporta o eixo de análise dos diretores (a política dos
autores) para os atores e parte do mesmo princípio de análise criado por
Godard, Truffaut e cia: identificar marcas autorais no trabalho de quatro
atores americanos do cinema clássico (James Stewart, John Wayne, Gary Cooper e
Cary Grant).
O cinema não é o meio de representação em
que os intérpretes mereceram mais atenção dos estudos universitários e acadêmicos.
É preciso se curvar diante da evidência de que existem poucos autores sérios
que se propuseram a pensar a contribuição dos atores de celulóide, ao contrário
de um número significativo de pensadores teatrais – da estirpe de
Diderot, Meyerhold, Stanislavski e Beckett – que escreveram longas páginas
de teorias e análises sobre os atores teatrais.
A apreciação do trabalho dos atores
ganha, ao contrário, espaço no discurso crítico. No entanto, esses textos acabam
apenas por louvar ou achincalhar determinadas performances baseadas sempre no
critério do mimetismo e do naturalismo como único referencial de análise. O
primeiro campo de estudos que se interessou por estudar os intérpretes no
cinema foi a sociologia, que concentrava nas dimensões culturais e econômicas
do star system hollywoodiano suas principais preocupações. Na França, o
também sociológo Edgar Morin sistematizou esse conceitos da “star mercadoria” no livro Les stars, que se tornou referência para os estudos
em star system, não somente europeus, mas
também americanos. Morin não esconde, no entanto, sua predileção por uma
abordagem sociológica e ecônomica das estrelas de cinema, ignorando
voluntariamente a apreciação estética do trabalho dos atores. Mais tarde, no
livro Stars, Richard Dyer revê alguns conceitos de Morin e propõe uma nova maneira de análise
acrescentando já um pouco da análise estética que será a tônica do
trabalho de Luc Moullet.
No entanto, a referência mais importante
para Moullet foi outro pesquisador americano, Patrick McGilligan, que além de
teórico é biógrafo de estrelas do primeiro time de Hollywood como Clint Eastwood.
McGilligan usou, pela primeira vez, a expressão “o ator como autor” (the
actor as auteur) na obra que dedica a James Cagney, como um modelo de análise
poético-estética das influências mútuas entre ator e diretor e suas consequências
no processo de criação e de recepção do filme. Para McGilligan, “existem certos
atores cujas possibilidades de atuação e as personas
cinematográficas são tão marcantes que elas
dão corpo e definem a essência do próprio
filme”. Não é por acaso que McGilligan usa o termo auteur em francês, pois ele remete
diretamente ao conceito de “autor” criado pelos críticos da Cahiers du Cinéma. Como
para os diretores, trata-se de investigar na obra de cada ator
manifestações de uma aparência de mundo pessoal e
uma evolução do estilo de interpretação.
E foi
nessa linha de análise que Luc
Moullet pensou seu Política dos Atores. Moullet esmiuça o trabalho de
encarnação desses quatros astros americanos na mesma postura de encontrar
genialidade e autoria no trabalho massificado feito dentro da indústria de
Hollywood que levou Godard a clamar que Hitchcock e Hawks eram artistas da
mesma estirpe de um Lamartine ou de um Victor Hugo.
A posição de Luc Moullet é frontal e
pode ser considerada polêmica, assim como o restante do trabalho do
cineasta-pensador. Em entrevista à revista Vertigo, Moullet defende que “o
ator é também um motor da mise
en scène,
ele é quase o autor do filme, da mesma maneira que o
diretor”, posição considerada atentadora tanto do
lado hollywoodiano (onde o produtor é às vezes mais
importante até que o diretor), quanto do lado europeu (que tem o
autor-diretor como grande motor de um filme). Ora, o que Moullet faz
é distribuir (sem, no entanto, diluí-lo) o trabalho de
autoria de um filme, ao propor uma análise do “programa
gestual” do ator e dos instantes da criação do
filme como determinantes para sua apreciação
estética. O ator e as influências que ele recebe/oferece
ao diretor modelam assim a forma fílmica, da mesma maneira que
podem fazê-lo o trabalho do diretor de fotografia e do montador.
O ator seria então uma superfície visível e
sensível sobre a qual viriam se colocar toda uma série de
afetos e pulsações do diretor. Algumas dessas
pulsões seriam inteiramente controladas pelo diretor (ele
é o senhor da montagem, pode destruir ou criar nuances para um
papel sem a presença do ator). Outras, seriam comandadas pelo
intérprete, que não se dobraria totalmente ao programa
estabelecido pelo diretor e criaria um personagem baseado em suas
particularidades corporais (os gestos, um tom de voz), mundanas (suas
preferências sexuais, políticas, intelectuais) e nas
relações estabelecidas entre ele e outros autores que
contribuiram para criar sua “persona cinematográfica”.
Essa última dimensão permitiria ver o corpo do ator como transmissor de um “desejo
de irmandade”, exemplificado pelo reemprego de um ator como Jean-Pierre Léaud
na obra de diretores oriundos da Nouvelle Vague (Truffaut, Godard) e de outros,
influenciados pelo movimento (Jean Eustache, Olivier Assayas). Moullet resumiu
assim seu pensamento: “atores como Grant, Wayne,
Cooper e Stewart determinam um gênero particular de personagem e uma temática
(quiça uma estética) ligada a ele. Os bons atores tem um ritmo, um tempo único.
Delon, por exemplo, só é verdadeiramente bom nos papéis de perdedor”, alfineta
Moullet – Delon nunca foi um ator que esteve nas graças do crítico.
Política
dos Atores, a obra, é dividida
em quatro grandes capítulos, cada um dedicado a um ator e com
títulos poeticamente escolhidos: “Gary Cooper: a
imortalidade da esfinge”; “John Wayne: no caminho da
decripitude”; “Cary Grant: o sprint e a pose”;
“James Stewart: o homem de mãos”. Toda a
fascinação cinéfila que Moullet pode ter por esses
atores não esconde, no entanto, críticas e
apreciações duras. A obra de John Wayne, por exemplo, que
Moullet chama de “odioso reacionário”, apresenta uma
unidade formidável calcada na “velhice, na decrepitude, no
tempo que passa”. Na sua verve de provocações,
Moullet considera mesmo que Wayne é o ator precursor da
interpretação em filmes de diretores modernos, que nada
tem a ver com o cinema clássico de Hollywood como Straub,
Kiarostami, Bresson, Rohmer ou Oliveira, por apresentar uma
“presença discreta e a silhueta perfeitamente integrada
à tapeçaria do filme”. Para descrever e compreender
a autoria de Cary Grant, Moullet elenca nove “figuras ou
orientações essenciais” (posturas, maneiras de
representar, de dizer uma frase, de ficar parado), que o ator
distribui em seus papeis: o canguru, o corredor, o oblíquo, o
recuo do olhar, o zoomorfismo, etc. Essa mesma observação
dos detalhes do jeu d’acteur,
Moullet vai usar para falar de Cooper e Stewart.
A obra
teórica máxima de Moullet ainda está em fase de validação empírica. Seus
conceitos ainda estão sendo testados e será ainda preciso contribuições
externas, de pesquisadores que trabalhem sobre corpus de estudos variados como
atores fora do star system europeu, por exemplo, para se ter o
verdadeiro alcance da teoria “atorística”. Para não ser acusado de misoginia,
assim como fez com Kurosawa, Moullet deverá também expandir seu espectro
de análise para as atrizes, o que ele esboçou em artigos sobre a americana
Jennifer Jones e a francesa Danielle Darrieux. Seja como for, a contribuição de
Moullet para a valorização estética do trabalho do ator deve ser valorizada
pela sua singularidade e ousadia.
Pedro Maciel Guimarães
Fevereiro
de 2011
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