Tudo é recusa no cinema do francês Jean Rollin.
Obrigado a fazer fitas pornôs, sob variados pseudônimos (Michel Gentil, Robert
Xavier, J. A. Lazer, entre outros), para financiar projetos mais pessoais e, em
última instância, sobreviver no mundo nada respeitável ou artístico do cinema,
Rollin sempre teve que lidar com os limites impostos pelas condições precárias
de produção e preconceitos inerentes ao dito cinema de gênero.
Sem nenhuma reputação a defender – pelo menos
junto aos críticos franceses, porque os demais simplesmente o ignoram –
ele optou por escancarar as restrições orçamentárias e realizar as mais
(aparentemente) apelativas fitas de terror, sobretudo, de vampiro(a)s, que
se poderia imaginar. E ele seria mais um hábil manipulador de fórmulas, não fosse
pelo seu talento em desfazer as amarras que deveriam aprisioná-lo.
Muito já se falou dos cineastas contrabandistas,
daqueles que no seio da própria indústria cinematográfica conseguiram
consolidar obras autorais. Mas nenhum deles operou em terreno tão inóspito
quanto Rollin, que desde seus primeiros longas-metragens teve de lidar com a
ira dos próprios fãs de filmes de horror, que não admitiam a “falta de sentido
das suas histórias”. Conta a lenda que a sala de exibição que fazia a estréia
de Le Viol du vampire (1967), escapou por pouco da depredação completa.
Embora seus filmes ofereçam fartas doses de violência
gráfica, mulheres nuas e cenas de sexo, Rollin nunca caiu na graça definitiva
dos apreciadores dos filmes de gênero, sobretudo, porque tais “medidas
comerciais” nada têm a ver com concessão de sua parte. Ao contrário, quando filma a violência gráfica, não
se esquiva de ressaltar todo o artificialismo da encenação. E, nas cenas de sexo
ou de nudez, remove todo erotismo. O procedimento é quase científico: quando o sexo é
consentido, é puramente descritivo, como numa cartilha de educação sexual, com
planos gerais em cenas ao ar livre e grander closes em ambientes fechados. Se
imposto, o sexo é repugnante: as várias cenas de estupro presentes nos filmes
de Rollin estão entre as mais cruéis e terríveis do cinema.
Rollin é uma espécie de Brecht dos vampiros, alguém
que está sempre a lembrar o papel do espectador, sempre a chamá-lo à
consciência da representação. E fazer tal transgressão dentro do gênero do horror,
cuja adesão da platéia à narrativa parece ainda mais essencial para o sucesso
do “efeito medo” ou “repulsa”, não é a maior ousadia de seus filmes. A recusa da representação nos trabalhos de Rollin é
mais radical. Seus protagonistas falam pouco, não têm expressão e
nem versam sobre as suas motivações – ele prefere utilizar, em sua
maioria, atores amadores ou saídos das suas produções pornôs.
Também não há qualquer traço de psicologia em seus
personagens. Ao contrário, eles parecem surpreendidos a todo instante por
eventos sobre os quais não tem o menor controle. Não por caso, estão
invariavelmente em fuga e, ao mesmo tempo, presos num instante de vida
que não oferece retorno ou redenção. As tramas dos filmes de Rollin frustram a todo o
momento a mitologia do gênero a que se filiam. Em Requiem pour un vampire (1971), por exemplo, o
vampiro do título é quase paterno diante de suas pretensas vítimas. Já em La
Morte vivante (1982), prevalece a solidão diante do fascínio gerado pela
imortalidade.
O misterioso vírus que acomete os personagens de La
Nuit des traquées (1980), extraindo-lhes a memória, é outro exemplo de
desconstrução do gênero por Rollin. Filmado numa Paris entre a madrugada e o
amanhecer, num imponente edifício comercial vazio, o thriller de perseguição que
o título ("A Noite das Perseguições") sugere converte-se num poema visual entre o grotesco e o sublime, no
qual as buscas dos protagonistas são “apagadas” constantemente, rompendo com o
desenvolvimento narrativo convencional.
Reserva criativa pouco explorada e vista, o cinema de
Rollin é habitado por seres fantásticos assustadoramente parecidos com todos
nós.
Adolfo Gomes
Fevereiro
de 2011
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