1. Desenrola começa com um plano duplamente “subjetivo”: no campo da imagem, temos o ponto
de vista de alguém que está submerso no mar, olhando para o céu; no plano sonoro,
ouvimos uma canção como se saísse de um aparelho de rádio embaixo da água.
Soma-se ao conjunto, em seguida, a narração em off de Priscila, a
personagem principal. Percebemos que ela está se afogando. Depois de fazer uma
breve digressão sobre o assunto, a menina introduz a primeira cena e a voz off é momentaneamente deixada de lado. Alguns minutos depois, retoma-se o recurso e
a jovem, deitada na banheira, pergunta: “Setenta por cento do nosso corpo é
feito de água. Será que dá pra se afogar na gente?”. Água, afogamento,
subjetividade: em Desenrola, como em diversos dos recentes filmes (com)
jovens feitos no país, a narração em off é o amparo que promete o
mergulho no personagem, esse ser desconhecido que é o adolescente, ao mesmo
tempo que lhe dá voz (e a voz da consciência é a verdadeira voz; a que sai pela
boca é apenas a dublagem dos pensamentos).
Promessa que nunca se cumpre, já
que, nestas obras, a fala em off é isso mesmo que o termo em inglês
sugere, uma enunciação que vem de “fora”. Este lugar exterior é o das frases de
efeito e elucubrações, que dizem mais respeito aos anseios dos realizadores do
que os dos jovens, aos quais finge-se revelar o íntimo. E não há problema algum
em agir como ventríloquo – o personagem sendo apenas a boca que se abre para
deixar sair a voz do autor -, desde que não se disfarce tal vontade com
metáforas enganosas (toda a questão da água/afogamento) e falsas juras. E,
ainda, que não se misture dois tipos de registro: o levemente naturalista da
“voz on” com este, pretensamente lírico, que, forçosamente é despejado por cima
da imagem, gerando nada além de um contraste denunciador.
2. Denunciador da incapacidade (ou
preguiça?) que o cineasta brasileiro demonstra, às vezes, em lidar com o seu
ofício. Afinal, só isso explicaria a abundância de “consultores” a assinarem
seus nomes nos créditos dos filmes sobre adolescentes. Sim, adolescentes, e não
dinossauros ou planetas distantes, assuntos que, verdadeiramente, necessitariam
de auxílio técnico, já que o número de cineastas-paleontólogos é minúsculo.
Claro, não é preciso ser um especialista em comportamento juvenil para se fazer
um longa-metragem sobre o tema (ou seja, não é necessário que se façam filmes
apenas sobre aquilo que se domina). Basta que haja disposição em imergir, para
valer, neste universo. Ainda que o uso do “consultor” sugira
indisposição, incapacidade e preguiça, talvez o real motivo de seu emprego pelo
cineasta brasileiro seja o medo – de parecer inverossímil, de não falar
“a linguagem dos jovens”, logo, de não atrair o público. Medo sanado, já que o
“consultor” é competente ao ponto de garantir as gírias do momento, as roupas
certas e as situações críveis na escola. Mas, de que adianta se, por trás desta
figura (e do projeto) há um olhar adulto – careta ao extremo – a
sabotar o próprio filme, discursando por cima das imagens, por cima dos jovens,
por cima da água?
3. Um pouco mais de água salgada e
subjetividade: a lágrima. Esse elemento, que pode fazer da câmera um aparelho
capaz de apreender o incapturável (Vive l´amour, de Tsai Ming Liang) ou
um objeto nefasto (o zoom in sorrateiro em direção ao rosto da vítima em
choro, no telejornalismo) é justamente a ruína de Desenrola. Em um
momento chave, quando o filme procura trazer à tona a relação entre subjetividade
e as metáforas com o afogamento, é que se nota perfeitamente o desarranjo
existente entre as duas vozes, a do jovem (personagens, tema) e do adulto
(realizadores). E este momento é aquele em que, quase ao final do
longa-metragem, Priscila, em voz off, recorda sua “primeira vez”. Enquanto
a jovem fala, vemos o flashback da transa. Então, a personagem
sentencia: “perder a virgindade é isso: acontece”. Segundos depois, acompanhada
de uma música meio docinha, meio solene, uma lágrima, em slow, escorre
pelo rosto da menina. Acontece? Onde está a casualidade desta afirmação
na imagem? O que temos aqui é o olhar pesaroso e melancólico do adulto que vê a
juventude como uma fotografia desbotada da sua própria adolescência, e nada
mais. Assim, não há “consultor” que garanta verossimilhança. Não há artifício
que garanta subjetividade.
Wellington Sari
Fevereiro
de 2011
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