A WOMAN, A GUN AND A NOODLESHOP
Zhang Yimou, San qiang pai an jing qi, China, 2009

Dia desses vi A Águia e a Flecha (The Flame and the Arrow, 1950), filme com Burt Lancaster, dirigido por Jacques Tourneur, e fiquei intrigado como o filme se entrega ao espetáculo circense – acrobacias, lançamentos de flechas perfeitos – como abertura ao divertimento, a um mundo em que não se separa a virtuosidade técnica de uma alegria inabalável. Quem, hoje em dia, seguiria esse caminho, esse casamento, esse deslumbre até infantil de filmar trapezistas, pessoas pulando e dando piruetas, filmando isso sem que precise ser um documentário sobre o circo (o que parece ser uma moda recente) ou uma paródia perversa em que se ri por descrença do corpo superar a Física? Ou seja, como fazer que não seja para se rir do circo, mas sim rir com o circo, e finalmente sem que seja sobre o circo, mas sim a partir de uma exigência por uma qualidade circense? Acho inclusive que uso o termo “circo” como uma facilidade a A Águia e a Flecha – sabemos que Lancaster começou sua carreira de cinema vindo de lá e que ocasionalmente suas habilidades corporais era a atração de seus primeiros filmes –, na falta de algo que descreva essa irradiação da rebeldia e do escárnio ao bom comportamento gestual, social, e a alegria do espetáculo como a libertação a essas convenções, a descoberta de uma humanidade melhor.

Nos seus melhores momentos, A Woman, a Gun and a Noodle Shop faz lembrar essa qualidade circense de A Águia e a Flecha. Já seria assim nos filmes anteriores de Zhang Yimou? Achava que não. Havia ali uma seriedade asfixiante, um exagero no verniz da dramaticidade, como se tudo não passasse de papel de parede. Não que Yimou tenha se livrado, em A Woman..., deste histrionismo, destas paisagens berrantes, esse universo dominado pela maldade do belo. Só que aqui estamos em um filme infantil, cômico, ridículo – que é também, por incrível que pareça, uma refilmagem de Gosto de Sangue, primeiro longa-metragem dos irmãos Coen.

Não dura mais que 5 segundos para notar que A woman... não terá qualquer semelhança, senão narrativa, com o filme dos Coen. Por sinal, é tal semelhança que mais vem incomodar no filme de Zhang: há muitos pequenos desdobramentos e excesso de personagens, como se isso fosse gerar uma espécie de comicidade por acúmulo, por repetição, um humor feito pela estrutura narrativa, mas cuja ambição é ultrapassá-la. O que diferencia Zhang é seu estilo espalhafatoso, escrachado, inscrito nos cenários e na lua sempre cheia, mais imbecil do que imbecilizador. Não há espaço para sutileza, nem para a inteligência, essa contemplação muda (o silêncio do cúmplice) de uma cena nos meandros, nas margens, onde só a câmera dos Coen poderia se infiltrar – aqui, não, estamos a céu aberto (didaticamente até: notar os enquadramentos oblíquos em que a noodle shop do título está como que aterrada pela imensidão do céu).

Mas, afinal, por que seria bom um filme estúpido, infantilizado? Porque não podemos nos sentir mais inteligentes que o filme em momento algum. O humor não é uma forma de salvação. A paródia e a auto-referência estão erradicadas. Saímos do filme tão incapazes de organizar aquela tragédia quanto as caricaturas que a viveram. E, principalmente, longe de qualquer elogio romanesco, o que talvez seja mais interessante de apontar em A Woman... são algumas situações coreográficas, como aquela, por exemplo, da feitura do macarrão. Ali a perfeição da técnica extrapola o verossímil e conquista a estupidez da ficção. Não há a pirraça de A Águia e a Flecha, mas talvez ainda possamos chegar lá novamente.

João Gabriel Paixão

 
 Setembro de 2010