Dia
desses vi A
Águia e a Flecha (The Flame and the Arrow,
1950),
filme com Burt Lancaster, dirigido por Jacques Tourneur, e fiquei
intrigado como o filme se entrega ao espetáculo circense
–
acrobacias, lançamentos de flechas perfeitos –
como
abertura ao divertimento, a um mundo em que não se separa a
virtuosidade técnica de uma alegria inabalável.
Quem,
hoje em dia, seguiria esse caminho, esse casamento, esse deslumbre
até infantil de filmar trapezistas, pessoas pulando e dando
piruetas, filmando isso sem que precise ser um documentário
sobre o circo (o que parece ser uma moda recente) ou uma
paródia
perversa em que se ri por descrença do corpo superar a
Física?
Ou seja, como fazer que não seja para se rir do
circo,
mas sim rir com o circo, e finalmente sem que seja sobre
o circo, mas sim a partir de uma exigência por uma qualidade
circense? Acho inclusive que uso o termo “circo”
como uma
facilidade a A Águia e a Flecha
– sabemos que
Lancaster começou sua carreira de cinema
vindo de lá
e que ocasionalmente suas habilidades corporais era a
atração
de seus primeiros filmes –, na falta de algo que descreva
essa
irradiação da rebeldia e do escárnio
ao bom
comportamento gestual, social, e a alegria do espetáculo
como
a libertação a essas
convenções, a
descoberta de uma humanidade melhor.
Nos
seus melhores
momentos, A Woman, a Gun and a Noodle Shop faz
lembrar essa
qualidade circense de A Águia e a Flecha.
Já
seria assim nos filmes anteriores de Zhang Yimou? Achava que
não.
Havia ali uma seriedade asfixiante, um exagero no verniz da
dramaticidade, como se tudo não passasse de papel de parede.
Não que Yimou tenha se livrado, em A Woman...,
deste
histrionismo, destas paisagens berrantes, esse universo dominado pela
maldade do belo. Só que aqui estamos em um filme infantil,
cômico, ridículo – que é
também, por
incrível que pareça, uma refilmagem de Gosto
de
Sangue, primeiro longa-metragem dos irmãos Coen.
Não
dura mais
que 5 segundos para notar que A woman...
não terá
qualquer semelhança, senão narrativa, com o filme
dos
Coen. Por sinal, é tal semelhança que mais vem
incomodar no filme de Zhang: há muitos pequenos
desdobramentos
e excesso de personagens, como se isso fosse gerar uma
espécie
de comicidade por acúmulo, por
repetição, um
humor feito pela estrutura narrativa, mas cuja
ambição
é ultrapassá-la. O que diferencia Zhang
é seu
estilo espalhafatoso, escrachado, inscrito nos cenários e na
lua sempre cheia, mais imbecil do que imbecilizador. Não
há
espaço para sutileza, nem para a inteligência,
essa
contemplação muda (o silêncio do
cúmplice)
de uma cena nos meandros, nas margens, onde só a
câmera
dos Coen poderia se infiltrar – aqui, não, estamos
a céu
aberto (didaticamente até: notar os enquadramentos
oblíquos
em que a noodle shop do título
está como que
aterrada pela imensidão do céu).
Mas,
afinal, por que
seria bom um filme estúpido, infantilizado? Porque
não
podemos nos sentir mais inteligentes que o filme em momento algum. O
humor não é uma forma de
salvação. A
paródia e a auto-referência estão
erradicadas.
Saímos do filme tão incapazes de organizar aquela
tragédia quanto as caricaturas que a viveram. E,
principalmente, longe de qualquer elogio romanesco, o que talvez seja
mais interessante de apontar em A Woman...
são algumas
situações coreográficas, como aquela,
por
exemplo, da feitura do macarrão. Ali a
perfeição
da técnica extrapola o verossímil e conquista a
estupidez da ficção. Não há
a pirraça
de A Águia e a Flecha, mas talvez ainda
possamos chegar
lá novamente.
João Gabriel Paixão
Setembro de 2010
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