TIO BOONMEE, QUE PODE RECORDAR SUAS
VIDAS PASSADAS

Apichatpong Weerasethakul, Lung Boonmee raluek Chat, Reino Unido/Tailândia/Alemanha/França/
Espanha, 2010


Quando Boonsong, o sobrinho macaco de Boonmee, reaparece a sua família, uma característica do cinema fantástico de Apichatpong se concretiza: o fato de que seu cinema realiza uma espécie de continuação da relação entre Chewbacca e Han Solo de Guerra nas Estrelas, entre Dennis Quaid e o ET em Inimigo Meu, pra citar alguns filmes em que o fantástico é uma ruptura que reconcilia. Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas é – e não é só pelo aspecto figurativo (Boonsong lembra muito o Chewbacca, e até serve narrativamente, ainda que de forma nublada, como um alívio cômico) – essa ruptura e é essa reconciliação. Mas antes vemos, afinal de contas, o que é um tanto desconcertante nestas amizades hollywoodianas. Sempre me pareceu um personagem inútil o Chewbacca. Não entendia muito bem como os personagens poderiam ter tanta afeição a ele. Como ele não era uma ameaça, como ele não assustava e, finalmente, como ele deixava de ser engraçado por ser tão-somente um boneco, grande até demais. De antemão, sua amizade com os demais membros da “Força” já é certa, é a pressuposição do espetáculo, sua lógica incompreensível, a postura imperturbável dos heróis, etc. Da mesma forma, a presença de Boonsong (e também do fantasma da esposa) é acompanhada desta mesma tranqüilidade, a glória boba do amor; de qualquer forma, algo que é estabelecido, estável, com o qual os personagens estranhamente não se assustam.

O que obviamente diferencia o Chewbacca de Guerra nas Estrelas e o Boonsong de Tio Boonmee é que este é fundamentalmente um desconhecido. Ele vem literalmente das trevas, seu corpo é o prolongamento deste território desconhecido, vemos seus olhos, mas não o que seus olhos vêem (e se podem ver). Por conta disso, inicialmente há nos personagens o espanto da aparição de tal criatura. Não se exige, porém, para tal aceitação, nada além de uma conversa trivial na sacada de uma casa, uma situação inimaginável como em uma comédia absurda do qual não há do que se rir. “Não há do que se rir”: um pouco como me sentia à debilidade do Chewbacca, condição deste espetáculo de diferenças, não de alteridades. A ruptura que só comprova o prolongamento interminável do amor.

Acontece também que, de novo ao contrário de Guerra nas Estrelas (e já me parece uma má analogia...), Boonsong é uma presença bastante forte e, como uma energia que precisa ser rebalanceada, os demais personagens “reais” nos parecem bastante fracos. O Tio Boonmee está notadamente em estado terminal. Aos demais, basta a ociosidade, um balançar na rede, uma conversa qualquer em um pomar. E como as pessoas são preguiçosas nos filmes de Apichatpong! A verossimilhança, o cotidiano, talvez não sejam nada mais que um conjunto de cenas de uma enorme preguiça – e é o que veremos ao longo do filme.

Nessa fraqueza, o cinema de Apichatpong lembra demais o de Shyamalan – e assim sendo, Tio Boonmee seria o A Vila do cineasta. Joaquim Phoenix em A Vila, Paul Giamatti em A Dama na Água, o Avatar de O Último Mestre do Ar, Mel Gibson em Sinais não seriam protagonistas cuja fraqueza promove a contemplação da fantasia do mundo, até o momento em que o personagem, com uma força até então oculta, superará tal contemplação e reorganizará a realidade? Voltando a Tio Boonmee, na cena em que a princesa é possuída por um peixe divino, também é bastante clara como essa perda de energia do personagem é reabsorvida pelo tempo, que se dilata, e pelo espaço, que se hiperdimensiona no fora-do-quadro (notar a voz off que constitui a presença necessariamente mais forte – divina? – do peixe). Mas, em Shyamalan como em Apichatpong, há inegavelmente uma memória (e talvez até uma reverência) ao cinema, memória que irá consumir nossos olhos e nos debilitar. Acredito que isso tenha algo a ver com contos de ninar, característica com a qual Shyamalan abertamente se identifica (diz ele que inspira seus filmes naquilo que conta a seu s filhos na hora de ele dormir), e que também está presente em Apichatpong. Não poderíamos evidenciar esse ninar, para além do conteúdo de lendas e o sempre evocativo fundo silencioso da noite, também nas falas tão docemente sussurradas pelos personagens? O terror, o mistério, o fantástico são uma passagem, que, em um momento de acúmulo, se extenuam e garantem uma doçura, uma serenidade. Poderíamos aí concluir uma domesticação do fantástico, como se ele só servisse para nos gerar um fascínio repousado, como se o mais distante e o mais desconhecido não deixasse de falar necessariamente sobre nós mesmos. É uma ressalva necessária, mas o que é interessante nestes dois cineastas é que há um ponto de reviravolta que, ao invés de adormecer, leva ao acordar.

Ao longo de Tio Boonmee, vemos a presença contínua do fantástico, e poderíamos dizer que este não é só alguns elementos irreverentes, mas sobretudo uma conspiração do que está atrás da imagem. Temos esta sensação sempre, reforçada nos trechos de câmera-na-mão, na presença da voz off, na volúpia da floresta... Mas há ainda algo além disso, algo ainda mais por trás. E, se até então não perdi de vista a “conciliação”, a conciliação prolongada pela ausência e pelo supra-real (que se embaralham na mesma idéia), aqui é o momento preciso de chegar na “ruptura”. Apichatpong quer mesmo chegar aos limites de sua idéia, demarcar suas fronteiras, esticar ao máximo seu conceito até rompê-lo. Não existe outra forma de pedagogia. O que vemos é inevitavelmente mais irreal que macacos, espíritos ou grutas ancestrais – são pessoas preguiçosas em um mundo contagioso, tudo que na verdade já tínhamos visto antes sem conseguir ver. A partir de então não há mais imagens por trás; a totalidade da cena impera, os limites espaciais são precisos. Um quarto é todo o quarto: seu chão, a parede, o teto, e as pessoas que o habitam.

Na primeira cena do filme, vemos uma vaca presa em uma árvore, mas, por uma razão desconhecida (ela não parece fazer força para rasgar a corda que a segura), consegue se soltar. Veremos então ela livre, não exatamente vagando, mas percorrendo um caminho, mesmo que não saibamos onde tal caminho a levará – percebemos nela uma força, mas não o que a move. Tio Boonmee é a recuperação e a compreensão dessa força.

João Gabriel Paixão


 Outubro de 2010