Quando Boonsong, o sobrinho macaco de Boonmee, reaparece
a sua família, uma característica do cinema fantástico
de Apichatpong se concretiza: o fato de que seu cinema
realiza uma espécie de continuação da relação entre
Chewbacca e Han Solo de Guerra nas Estrelas,
entre Dennis Quaid e o ET em Inimigo Meu,
pra citar alguns filmes em que o fantástico é uma ruptura
que reconcilia. Tio Boonmee, que Pode Recordar
Suas Vidas Passadas é – e não é só pelo aspecto
figurativo (Boonsong lembra muito o Chewbacca, e até
serve narrativamente, ainda que de forma nublada, como
um alívio cômico) – essa ruptura e é essa reconciliação.
Mas antes vemos, afinal de contas, o que é um tanto
desconcertante nestas amizades hollywoodianas. Sempre
me pareceu um personagem inútil o Chewbacca. Não entendia
muito bem como os personagens poderiam ter tanta afeição
a ele. Como ele não era uma ameaça, como ele não assustava
e, finalmente, como ele deixava de ser engraçado por
ser tão-somente um boneco, grande até demais. De antemão,
sua amizade com os demais membros da “Força” já é certa,
é a pressuposição do espetáculo, sua lógica incompreensível,
a postura imperturbável dos heróis, etc. Da mesma forma,
a presença de Boonsong (e também do fantasma da esposa)
é acompanhada desta mesma tranqüilidade, a glória boba
do amor; de qualquer forma, algo que é estabelecido,
estável, com o qual os personagens estranhamente não
se assustam.
O que obviamente diferencia o Chewbacca de Guerra
nas Estrelas e o Boonsong de Tio Boonmee
é que este é fundamentalmente um desconhecido. Ele vem
literalmente das trevas, seu corpo é o prolongamento
deste território desconhecido, vemos seus olhos, mas
não o que seus olhos vêem (e se podem ver). Por conta
disso, inicialmente há nos personagens o espanto da
aparição de tal criatura. Não se exige, porém, para
tal aceitação, nada além de uma conversa trivial na
sacada de uma casa, uma situação inimaginável como em
uma comédia absurda do qual não há do que se rir. “Não
há do que se rir”: um pouco como me sentia à debilidade
do Chewbacca, condição deste espetáculo de diferenças,
não de alteridades. A ruptura que só comprova
o prolongamento interminável do amor.
Acontece também que, de novo ao contrário de Guerra
nas Estrelas (e já me parece uma má analogia...),
Boonsong é uma presença bastante forte e, como uma energia
que precisa ser rebalanceada, os demais personagens
“reais” nos parecem bastante fracos. O Tio Boonmee está
notadamente em estado terminal. Aos demais, basta a
ociosidade, um balançar na rede, uma conversa qualquer
em um pomar. E como as pessoas são preguiçosas nos filmes
de Apichatpong! A verossimilhança, o cotidiano, talvez
não sejam nada mais que um conjunto de cenas de uma
enorme preguiça – e é o que veremos ao longo do filme.
Nessa fraqueza, o cinema de Apichatpong lembra demais
o de Shyamalan – e assim sendo, Tio Boonmee
seria o A Vila do cineasta. Joaquim Phoenix em
A Vila, Paul Giamatti em A Dama na
Água, o Avatar de O Último Mestre do Ar,
Mel Gibson em Sinais não seriam protagonistas
cuja fraqueza promove a contemplação da fantasia do
mundo, até o momento em que o personagem, com uma força
até então oculta, superará tal contemplação e reorganizará
a realidade? Voltando a Tio Boonmee, na
cena em que a princesa é possuída por um peixe divino,
também é bastante clara como essa perda de energia do
personagem é reabsorvida pelo tempo, que se dilata,
e pelo espaço, que se hiperdimensiona no fora-do-quadro
(notar a voz off que constitui a presença necessariamente
mais forte – divina? – do peixe). Mas, em Shyamalan
como em Apichatpong, há inegavelmente uma memória (e
talvez até uma reverência) ao cinema, memória que irá
consumir nossos olhos e nos debilitar. Acredito que
isso tenha algo a ver com contos de ninar, característica
com a qual Shyamalan abertamente se identifica (diz
ele que inspira seus filmes naquilo que conta a seu
s filhos na hora de ele dormir), e que também está presente
em Apichatpong. Não poderíamos evidenciar esse ninar,
para além do conteúdo de lendas e o sempre evocativo
fundo silencioso da noite, também nas falas tão docemente
sussurradas pelos personagens? O terror, o mistério,
o fantástico são uma passagem, que, em um momento de
acúmulo, se extenuam e garantem uma doçura, uma serenidade.
Poderíamos aí concluir uma domesticação do fantástico,
como se ele só servisse para nos gerar um fascínio repousado,
como se o mais distante e o mais desconhecido não deixasse
de falar necessariamente sobre nós mesmos. É uma ressalva
necessária, mas o que é interessante nestes dois cineastas
é que há um ponto de reviravolta que, ao invés de adormecer,
leva ao acordar.
Ao longo de Tio Boonmee, vemos a presença
contínua do fantástico, e poderíamos dizer que este
não é só alguns elementos irreverentes, mas sobretudo
uma conspiração do que está atrás da imagem. Temos esta
sensação sempre, reforçada nos trechos de câmera-na-mão,
na presença da voz off, na volúpia da floresta...
Mas há ainda algo além disso, algo ainda mais
por trás. E, se até então não perdi de
vista a “conciliação”, a conciliação prolongada pela
ausência e pelo supra-real (que se embaralham na mesma
idéia), aqui é o momento preciso de chegar na “ruptura”.
Apichatpong quer mesmo chegar aos limites de sua idéia,
demarcar suas fronteiras, esticar ao máximo seu conceito
até rompê-lo. Não existe outra forma de pedagogia. O
que vemos é inevitavelmente mais irreal que macacos,
espíritos ou grutas ancestrais – são pessoas preguiçosas
em um mundo contagioso, tudo que na verdade já tínhamos
visto antes sem conseguir ver. A partir de então não
há mais imagens por trás; a totalidade da cena
impera, os limites espaciais são precisos. Um quarto
é todo o quarto: seu chão, a parede,
o teto, e as pessoas que o habitam.
Na primeira cena do filme, vemos uma vaca presa em uma
árvore, mas, por uma razão desconhecida (ela não parece
fazer força para rasgar a corda que a segura), consegue
se soltar. Veremos então ela livre, não exatamente vagando,
mas percorrendo um caminho, mesmo que não saibamos onde
tal caminho a levará – percebemos nela uma força, mas
não o que a move. Tio Boonmee é a recuperação
e a compreensão dessa força.
João Gabriel Paixão
Outubro
de 2010
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