São sobretudo os meios-tons que predominam nos
planos de Tio Boonmee. A imagem aqui às
vezes é quase cinza. É nessa passagem
entre a cor e o seu desbotamento completo, entre a sombra
e a luz, a noite e o dia, que se passam os fenômenos
que o filme pretende capturar (para os que ainda não
sabem, é um filme fantástico). Ou pelo
menos é aí que eles se tornam visíveis.
O filme começa com uma cena em pleno crepúsculo.
Uma vaca amarrada em uma árvore se solta e foge
floresta adentro, obstinada, atraída por algo,
um tipo de força talvez, que ignoramos. Acontece
aí a primeira aparição dentre muitas
que virão no filme.
Tio Boonmee, o personagem do título, é
um velho senhor que está morrendo e que conta
seus últimos dias de vida. O filme é também
sobre essa passagem da vida à morte, e sobre
os encontros com certas figuras do além que precedem
esta passagem. Apichatpong trabalha a partir de uma
organização geométrica do espaço
narrativo. É isso que abre os espaços
e lacunas (necessárias, óbvias, deflagradoras)
a serem preenchidos pela face invisível do mundo
– as aparições. Como nos filmes
fantásticos de caráter mitológico
essencial, é um cinema onde as coisas (os objetos,
as imagens) existem apenas pelo mero sentido de presença.
Um filme que de certa maneira tematiza a presença.
Apichatpong é, então, um verdadeiro cineasta
do espaço. Mas isso não apenas no sentido
de uma geometria da narrativa. O que há de incrível
nos seus planos (todos sabem) é principalmente
a capacidade de imprimir densidade e a espessura de
um mundo através da câmera – é
isso que é “filmar bem”, ou “filmar
bem uma floresta”, afinal. Qual o resultado disso?
É uma coisa que realmente conta e ganha um sentido,
num filme como Tio Boomnee, o mero entrar e sair
do quadro, aparecer e desaparecer da imagem (mesmo que
isso dure apenas alguns segundos, como nos planos de
caminhada pela mata). É um filme sobre aparições
do além, mas no qual os próprios personagens
parecem submetidos o tempo todo ao mesmo risco (desaparecer,
reaparecer, se duplicar) diante do espectador.
Existe um clímax em Tio Boomnee. É
quando os personagens entram floresta adentro e depois
descem pelas pedras, penetrando numa gruta. A câmera
aqui é mais nervosa do que no resto do filme
– alguns planos de câmera na mão,
tateando o espaço, procurando aqueles personagens
que podem desaparecer a qualquer minuto. Então
eles chegam, e a câmera filma um plano iluminado
(uma luz branca, forte, trêmula, artificial) de
uma poça subterrânea de água límpida,
onde é possível ver vários peixes
nadando. O plano deixa a sensação de um
verdadeiro milagre narrativo. A dramaturgia do adensamento
(a partir de uma mera paisagem natural) atingiu o seu
ponto máximo. De agora em diante, no filme, iremos
vibrar (praticamente) com imagens banais – uma
música num bar, uma situação de
quarto de hotel (como naquela cena dos velhinhos dançando
no final de Síndromes e um Século).
Tio Boomnee é um filme de sublimação
das operações fundamentais do cinema.
Calac Noguera
Maio
de 2010
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