A respeito de Film Socialisme,
só gostaria de apontar uma coisa. É o seguinte:
em uma entrevista de Dirigido por John Ford,
de Peter Bogdanovich, Steven Spielberg conta de quando
conheceu Ford pessoalmente. Foi um encontro passageiro
no escritório do mestre, quando Spielberg ainda era
adolescente. Ford pedia para o jovem descrever as pinturas
que via, necessariamente paisagens de western.
Spielberg começava a descrição, e Ford o interrompia,
interrogando: “mas onde está o horizonte?”. Nos três
quadros da parede de seu escritório, ou o horizonte
estava bem em baixo do quadro ou bem em cima. Ford concluía:
“No dia que você perceber que colocar o horizonte bem
em cima ou bem em baixo do quadro é muito melhor do
que colocá-lo no meio do quadro, talvez você seja um
bom cineasta. Agora caia fora daqui”.
Essa lição também é belíssima em sua negação. Veremos
com Godard, especialmente dos anos 80 para cá, um cinema
que pede para o horizonte estar bem no meio do quadro.
Não duvidem que, se Godard é anti-hollywoodiano, ele
o é por inteiro. Não era assim, é claro, em O Desprezo
e a exuberância da ilha de Capri e das estátuas gregas
– este era um filme para admitir, e por fim dominar,
a beleza. Não é mais o que vemos em Film Socialisme.
A primeira imagem é até da imensidão do oceano, mas
na verdade um oceano sem horizonte, que não se
une ao céu ou à terra, e, como diz uma voz em off,
é tão público quanto o dinheiro – sua disponibilidade
impede de abarcá-lo em sua totalidade. Porém, ao longo
do filme, especialmente no primeiro e segundo ato, veremos,
e graficamente há que haver mesmo, um horizonte, uma
linha no fundo do quadro que garanta a perspectiva.
E a que Godard escolhe não é só, evidentemente, por
conta da plasticidade; qualquer um poderia desconhecer
a lição de Ford e enquadrar, por falta de melhor idéia,
o horizonte bem no meio do quadro. É que isso é também
– e não só em Godard como também em Suplício
de uma Alma, de Fritz Lang, O Dinheiro, de
Robert Bresson, No Quarto da Vanda, de Pedro
Costa, e o final de Tio Boonmee, de Apichatpong,
entre outros – uma maneira de compreender um espaço
total, do chão ao teto, com os homens no meio, de respeitar
todos os detalhes cenográficos como se não houvesse
fora-de-tela. Se cortasse uma parte da pia pela borda
inferior do quadro, isso não significaria se importar
com uma pia, mas sim aceitá-la em um todo maior, maior
que a imagem, talvez até atribuir ao mero pedaço que
sobra de pia a vaga idéia de acolho domiciliar. Já na
escolha de Godard, os elementos cênicos estão mais somados
do que integrados, e isso nos encurrala, como uma espécie
de claustrofobia da verossimilhança, em um cenário inquebrantável
e banal, banal porque inquebrantável. É o oposto da
plasticidade poética de Ford: é o fim do solo e do longe,
do território e suas conquistas. Não se trata de continuar
ou reescrever a História (como Ford), mas de esgotá-la.
João Gabriel Paixão
Outubro
de 2010
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