Essential Killing é um
filme construído a partir de dois pilares: uma subjetividade
que se ausenta de um corpo e um espaço que se presentifica
a todo instante. A dinâmica entre o homem sem história
e sem consciência e o cenário natural magnificado em
escala e potência estabelece um embate indireto de forças
que cria uma tensão dramática inusitada e absolutamente
fora de um eixo estritamente narrativo. Trata-se de
um filme que tende à abstração, tanto no registro da
natureza quanto no desenho dos gestos humanos, ainda
que a fisicalidade das matérias e dos corpos seja eminente
e sobrepuje significações quaisquer. E é exatamente
aí que reside o giro de genialidade de Skolimowski na
concepção deste projeto: um pseudo-cenário conhecido
(o da guerra ao terror) no qual o que menos interessa
é aquilo que pode ser reconhecido. De um lado, os interrogatórios,
a tortura e os procedimentos militares, que acompanhamos
com alguma dose de familiaridade e de revelação, e,
de outro, uma trama prévia qualquer, que podemos apenas
tentar adivinhar pelos traços mais do que pálidos do
background do personagem, revelados por flahsbacks
um tanto genéricos ao longo do filme.
Afastando-se, portanto, de início, do espírito de intriga,
para focar-se em embates de forças, Essential Killing
aproxima-se mais de O Sobrevivente, ou de qualquer
outro filme de Werner Herzog, do que da filmografia
sobre os conflitos pós-11 de setembro. Não porque a
narrativa de sobrevivência em si seja sua diretriz mais
importante, mas porque Skolimowski se dedica a filmar
um embate de forças vitais bastante próximo daquele
que está no centro do cinema de Herzog; ao menos em
linhas gerais, já que, em Herzog, a tônica dominante
é a da violência inexorável da não-conciliação entre
homem e natureza, enquanto em Skolimowski trata-se da
pulsão vital que persiste a todo custo e se recusa a
fraquejar diante dos obstáculos. Aliada à ausência de
subjetividade - e de consciência prescritível - do personagem
de Vincent Gallo, esta pulsão vital o configura como
um animal ocupado somente de garantir sua sobrevivência
a cada segundo, sem antes, sem depois: sem linha histórica.
Apartada a história, aparta-se também a política. Ou
melhor: ressignifica-se a política. Se Essential
Killing pudesse por ventura ser aproximado da noção
de filme político seria tão somente por sua afirmativa
de que a política primeira é a política da vida, a da
contingência dos corpos frente a percalços e intempéries
que o colocam em risco, dinamitando a cultura e tudo
o mais que ele carregue. As reconfigurações sucessivas
da imagem do personagem no decorrer de seu périplo sugerem
este apagamento progressivo de sua identidade: de turbante
e saião a uniforme laranja, de uniforme laranja a vestimenta
de oficial, de vestimenta de oficial a trajes brancos,
etc. A cada paisagem, uma nova roupa, um novo visual,
uma nova estratégia, um novo homem.
Trata-se, enfim, de um filme sobre a conquista do desconhecido.
Seja a nossa "conquista" de um indivíduo desconhecido,
pelo qual desenvolvemos uma empatia frágil, sempre margeando
o que seria uma real adesão pela identificação,
seja a conquista deste indivíduo de um mundo absolutamente
desconhecido e hostil, ao qual ele tenta se adaptar
mesmo sem possuir as ferramentas para decifrá-lo. Há
um estado de perplexidade diante da vastidão ameaçadora
do espaço e de sua gerência pelos homens que atravessa
o filme de forma um tanto desconcertante, ao qual o
gesto solidário da mulher que acolhe Vincent Gallo ao
final serve de complemento acalentador: uma fagulha
humana em meio à brutalidade da natureza selvagem.
Natureza que, em seus contornos de caos e na inclinação
à abstração, remete à de Dog Star Man, de Stan
Brakhage. A luta entre Vincent Gallo e a floresta de
neve é como a luta hercúlea da figura humana brakhagiana
(também contra uma floresta): um choque de energias
no qual o homem se define apenas pela vontade, pela
força de um desejo vetorial, que é o de triunfar sobre
a natureza. A grande diferença reside no fato de que,
em Brakhage, a potência do embate sublima a forma, esfacelando
o figurativismo, e, em Skolimowski, é a forma que vem
dar contornos abstratos ao embate, no quadro que "desliza"
por sobre as vastas paisagens, deliberadamente dinamitando
a perspectiva. É que, ainda que o reprima a um estágio
quase pré-consciente, Skolimowski ainda ancora seu cinema
no olhar do homem, ou melhor, no ponto de vista. E é
isto que possibilita não apenas o já citado encontro
ao final, como os esplêndidos planos de animais ao longo
do filme. Pois, afinal, apenas no ponto de vista reside
a noção de perigo.
Tatiana Monassa
Outubro
de 2010
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