ESSENTIAL KILLING
Jerzy Skolimowski, Essential Killing, Polônia/Noruega/Irlanda/Hungria, 2010

Essential Killing é um filme construído a partir de dois pilares: uma subjetividade que se ausenta de um corpo e um espaço que se presentifica a todo instante. A dinâmica entre o homem sem história e sem consciência e o cenário natural magnificado em escala e potência estabelece um embate indireto de forças que cria uma tensão dramática inusitada e absolutamente fora de um eixo estritamente narrativo. Trata-se de um filme que tende à abstração, tanto no registro da natureza quanto no desenho dos gestos humanos, ainda que a fisicalidade das matérias e dos corpos seja eminente e sobrepuje significações quaisquer. E é exatamente aí que reside o giro de genialidade de Skolimowski na concepção deste projeto: um pseudo-cenário conhecido (o da guerra ao terror) no qual o que menos interessa é aquilo que pode ser reconhecido. De um lado, os interrogatórios, a tortura e os procedimentos militares, que acompanhamos com alguma dose de familiaridade e de revelação, e, de outro, uma trama prévia qualquer, que podemos apenas tentar adivinhar pelos traços mais do que pálidos do background do personagem, revelados por flahsbacks um tanto genéricos ao longo do filme.

Afastando-se, portanto, de início, do espírito de intriga, para focar-se em embates de forças, Essential Killing aproxima-se mais de O Sobrevivente, ou de qualquer outro filme de Werner Herzog, do que da filmografia sobre os conflitos pós-11 de setembro. Não porque a narrativa de sobrevivência em si seja sua diretriz mais importante, mas porque Skolimowski se dedica a filmar um embate de forças vitais bastante próximo daquele que está no centro do cinema de Herzog; ao menos em linhas gerais, já que, em Herzog, a tônica dominante é a da violência inexorável da não-conciliação entre homem e natureza, enquanto em Skolimowski trata-se da pulsão vital que persiste a todo custo e se recusa a fraquejar diante dos obstáculos. Aliada à ausência de subjetividade - e de consciência prescritível - do personagem de Vincent Gallo, esta pulsão vital o configura como um animal ocupado somente de garantir sua sobrevivência a cada segundo, sem antes, sem depois: sem linha histórica.

Apartada a história, aparta-se também a política. Ou melhor: ressignifica-se a política. Se Essential Killing pudesse por ventura ser aproximado da noção de filme político seria tão somente por sua afirmativa de que a política primeira é a política da vida, a da contingência dos corpos frente a percalços e intempéries que o colocam em risco, dinamitando a cultura e tudo o mais que ele carregue. As reconfigurações sucessivas da imagem do personagem no decorrer de seu périplo sugerem este apagamento progressivo de sua identidade: de turbante e saião a uniforme laranja, de uniforme laranja a vestimenta de oficial, de vestimenta de oficial a trajes brancos, etc. A cada paisagem, uma nova roupa, um novo visual, uma nova estratégia, um novo homem.

Trata-se, enfim, de um filme sobre a conquista do desconhecido. Seja a nossa "conquista" de um indivíduo desconhecido, pelo qual desenvolvemos uma empatia frágil, sempre margeando o que seria uma real adesão pela identificação, seja a conquista deste indivíduo de um mundo absolutamente desconhecido e hostil, ao qual ele tenta se adaptar mesmo sem possuir as ferramentas para decifrá-lo. Há um estado de perplexidade diante da vastidão ameaçadora do espaço e de sua gerência pelos homens que atravessa o filme de forma um tanto desconcertante, ao qual o gesto solidário da mulher que acolhe Vincent Gallo ao final serve de complemento acalentador: uma fagulha humana em meio à brutalidade da natureza selvagem.

Natureza que, em seus contornos de caos e na inclinação à abstração, remete à de Dog Star Man, de Stan Brakhage. A luta entre Vincent Gallo e a floresta de neve é como a luta hercúlea da figura humana brakhagiana (também contra uma floresta): um choque de energias no qual o homem se define apenas pela vontade, pela força de um desejo vetorial, que é o de triunfar sobre a natureza. A grande diferença reside no fato de que, em Brakhage, a potência do embate sublima a forma, esfacelando o figurativismo, e, em Skolimowski, é a forma que vem dar contornos abstratos ao embate, no quadro que "desliza" por sobre as vastas paisagens, deliberadamente dinamitando a perspectiva. É que, ainda que o reprima a um estágio quase pré-consciente, Skolimowski ainda ancora seu cinema no olhar do homem, ou melhor, no ponto de vista. E é isto que possibilita não apenas o já citado encontro ao final, como os esplêndidos planos de animais ao longo do filme. Pois, afinal, apenas no ponto de vista reside a noção de perigo.

Tatiana Monassa


 Outubro de 2010