Body Snatchers
O que é espantoso em Ano Bissexto, exibido na
Quinzena dos Realizadores e vencedor do prêmio Caméra
d’Or no Festival de Cannes, é como o filme se mete a
encenar uma série desejos e patologias sexuais sem nem
ao menos procurar compreender as razões ou as conseqüências
disso para a sua personagem. É como se uma zona de vácuo
tivesse dado lugar ao cérebro do filme, cortando as
ligações nevrálgicas, o que torna o resultado não apenas
aleatório e gratuito, como débil. Laura, a protagonista,
não se submete a sessões de tortura sexual simplesmente
porque gosta ou porque sente prazer – isso seria plenamente
compreensível (mesmo no caso de buscar a morte durante
o ato sexual). Ela marca em seu calendário o dia planejado
para sua morte, que coincide com o aniversário de quatro
anos da morte de seu pai – um 29 de fevereiro. Seria
algum tipo de mística oculta que relaciona as taras
sexuais da personagem, a morte de pai e as rotações
do planeta? Se é, então esqueceram disto na hora de
filmar – se tivessem lembrado, o resultado talvez fosse
um pouco melhor.
Uma coisa, no entanto, é certa: para Michael Rowe, uma
barata no chão da sala e uma meleca tirada do nariz
valem tanto quanto uma sessão de sexo sadomasô. Ele
compila imagens mais do que propriamente se propõe a
encenar. Há uma preguiça e uma falta de jeito tremendos
na direção que fazem com que a barata e uma cena de
sexo sejam filmadas rigorosamente da mesma forma, sob
o álibi de supostas “crueza” e “isenção” – é a câmera
“observacional” que no fundo não observa nada, que não
encena nada de relevante que não o seu próprio vácuo
(moral, intelectual, dramático). Rowe acredita que,
ao fazer com que a personagem deseje e aceite se submeter
a sessões de tortura sexual, resolve o problema moral,
ficando isento de qualquer responsabilidade sobre ela
– ele ignora, no entanto, que tem responsabilidade sobre
o filme, sobre a narrativa a que o espectador assiste.
Só queremos um filme (não é muito), que uma personagem
ou uma câmera sintam alguma coisa (prazer, dor,
terror, anseio da morte, qualquer coisa). Impossível.
É esse tipo de debilidade que paira sobre Ano Bissexto
– essa irresponsabilidade abissal, essa dificuldade
primária de se concatenar as coisas. Tudo é tão ruim
que não vale nem a pena entrar em questões estéticas
– na emulação porca que Rowe faz de certos clichês de
estilo contemporâneos (basta comparar o uso do plano-seqüência
no filme com o do romeno Terça Depois do Natal,
de Radu Muntean – ambos exibidos em Cannes neste ano
de 2010).
É um filme que só encontra lugar hoje (e prêmios no
suposto maior festival do mundo) devido ao cinismo que
acomete o mundo. Um mundo onde uma boa risada vale mais
que um bom filme, porque afinal o importante é não perder
a esportiva, não levar a sério. Faz lembrar a fabulosa
frase de Inácio Araújo a respeito dos espectadores de
hoje em dia, “que parecem ter sido substituídos por
legumes”. O triste é constatar aqui é que o mesmo parece
ter acontecido também com os diretores de filmes e curadores
de festivais.
Calac Nogueira
Outubro
de 2010
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