ANO BISSEXTO
Michael Rowe, Año Bisiesto, México, 2010

Body Snatchers

O que é espantoso em Ano Bissexto, exibido na Quinzena dos Realizadores e vencedor do prêmio Caméra d’Or no Festival de Cannes, é como o filme se mete a encenar uma série desejos e patologias sexuais sem nem ao menos procurar compreender as razões ou as conseqüências disso para a sua personagem. É como se uma zona de vácuo tivesse dado lugar ao cérebro do filme, cortando as ligações nevrálgicas, o que torna o resultado não apenas aleatório e gratuito, como débil. Laura, a protagonista, não se submete a sessões de tortura sexual simplesmente porque gosta ou porque sente prazer – isso seria plenamente compreensível (mesmo no caso de buscar a morte durante o ato sexual). Ela marca em seu calendário o dia planejado para sua morte, que coincide com o aniversário de quatro anos da morte de seu pai – um 29 de fevereiro. Seria algum tipo de mística oculta que relaciona as taras sexuais da personagem, a morte de pai e as rotações do planeta? Se é, então esqueceram disto na hora de filmar – se tivessem lembrado, o resultado talvez fosse um pouco melhor.

Uma coisa, no entanto, é certa: para Michael Rowe, uma barata no chão da sala e uma meleca tirada do nariz valem tanto quanto uma sessão de sexo sadomasô. Ele compila imagens mais do que propriamente se propõe a encenar. Há uma preguiça e uma falta de jeito tremendos na direção que fazem com que a barata e uma cena de sexo sejam filmadas rigorosamente da mesma forma, sob o álibi de supostas “crueza” e “isenção” – é a câmera “observacional” que no fundo não observa nada, que não encena nada de relevante que não o seu próprio vácuo (moral, intelectual, dramático). Rowe acredita que, ao fazer com que a personagem deseje e aceite se submeter a sessões de tortura sexual, resolve o problema moral, ficando isento de qualquer responsabilidade sobre ela – ele ignora, no entanto, que tem responsabilidade sobre o filme, sobre a narrativa a que o espectador assiste. Só queremos um filme (não é muito), que uma personagem ou uma câmera sintam alguma coisa (prazer, dor, terror, anseio da morte, qualquer coisa). Impossível. É esse tipo de debilidade que paira sobre Ano Bissexto – essa irresponsabilidade abissal, essa dificuldade primária de se concatenar as coisas. Tudo é tão ruim que não vale nem a pena entrar em questões estéticas – na emulação porca que Rowe faz de certos clichês de estilo contemporâneos (basta comparar o uso do plano-seqüência no filme com o do romeno Terça Depois do Natal, de Radu Muntean – ambos exibidos em Cannes neste ano de 2010).

É um filme que só encontra lugar hoje (e prêmios no suposto maior festival do mundo) devido ao cinismo que acomete o mundo. Um mundo onde uma boa risada vale mais que um bom filme, porque afinal o importante é não perder a esportiva, não levar a sério. Faz lembrar a fabulosa frase de Inácio Araújo a respeito dos espectadores de hoje em dia, “que parecem ter sido substituídos por legumes”. O triste é constatar aqui é que o mesmo parece ter acontecido também com os diretores de filmes e curadores de festivais.

Calac Nogueira


 Outubro de 2010