O cinema serve também para sairmos em uma viagem; viagem, assim, na sua acepção mais ordinária, próxima da idéia de turismo. Em Ao Mar, vamos viajar juntos com um menino de cinco anos para a terra natal de seu pai, um recife de coral no mar caribenho. Claro que se trata de um local exótico sob o signo da contemporaneidade
exacerbada do século XXI, um local que se sustenta em uma economia primária (a pesca) e tem uma população diminuta. Mas, se podemos dizer
que Ao Mar realmente viaja àquele
lugar,
esse elogio não diz respeito ao exotismo e ao turismo e poderia servir a qualquer outro lugar, mesmo às mais efervescentes metrópoles. Porque viajar é compreender um ritmo, investigar um espaço e um trabalho, ter a percepção de como se vive.
É interessante como Ao Mar não
deixa de se posicionar tal qual o menino em relação àquele lugar. Como a criança – que talvez nunca tenha ido lá, mas se entrega ao ambiente de uma
maneira muito concreta, até pela curiosidade à natureza e pela segurança paterna –, não se tem a noção de
longe, de exótico. As coisas estão aí, presentes no mundo, e aconteceriam
mesmo
sem a gente. Uma garça é tão próxima quanto seu pai; um snoker
é tão
alheio quanto uma câmera. Não que seja um filme que incorpore a “percepção infantil”. Falo de um desembaraçamento, de uma falta de vontades e compromissos, de
uma entrega
ao real. Nada mais longe de representações de imagens mentais, registros afetivos, ou coisa que o valha. O que vale em Ao Mar é
filmar o presente: garças que comem insetos, lagostas sendo descamadas.
Há uma história
em Ao Mar, é a história do mundo, e ela é contada pelas
pessoas,
pelos bichos, pelo mar e pelo vento, ou seja, através da viagem. Não há nenhum interesse em algo que não seja da experiência destes personagens. A câmera perturba
o menos
possível o que filma – isso não tem nada a ver com estar ou não encenando. O que interessa está na frente da objetiva, colando-se
no ponto
de vista dos adultos e da criança. A paisagem, o horizonte, o oceano, tais vastidões só existem se justapostas,
mensuradas, na altura da nossa própria visão. Ou as filmagens dentro d’água: o que interessa é
filmar a pesca, o nado do pescador, as tentativas de escape do pescado e isso tudo envolto no espaço ainda tão misterioso do fundo do mar. Poucas vezes tinha visto um pescador. O que vemos, geralmente, é um conceito do pescador: ora pessoas solitárias e tranqüilas, levadas ao sabor das marolas em uma paisagem monocromática e abstrata (versão: um pescador que também poderia ser um monge, um agricultor, ou que você bem quiser); ora pessoas enérgicas, que trabalham
em grupos e enfrentam a fúria de Poseidon (versão que poderia servir a qualquer esportista, militar, maconheiro roqueiro, etc.). Em Ao Mar, não
se busca
um conceito (uma afirmação prévia do realizador àquilo que posteriormente irá
filmar), se busca o trabalho. O que é um pescador? Não pergunto como documentarista, no
sentido de documentação, de burocracia como que isenta de reflexão sobre seu objeto – ao contrário, pergunto no sentido de indistingüir documentário e ficção.
Quando o pai e o filho vão à procura da garça, no final do filme, e não conseguem achá-la, o que existe não é a distância e os métodos, a ausência e as hipóteses, a morte; o que existe é o que está
perto,
é o mangue que sobra na falta da garça, os gritos da procura, o olhar ao vazio que pergunta. Ao mar não busca essa garça, ele busca o presente. E, enquanto o presente existir, talvez possamos continuar a viver e nos fazer perguntas.
João Gabriel Paixão
Outubro
de 2010
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