TROPA DE ELITE 2 - O INIMIGO AGORA É OUTRO
José Padilha, Brasil, 2010

O desafio de realizar Tropa de Elite 2 deve ter sido imenso. O peso do sucesso estrondoso e controverso do primeiro filme, identificado majoritariamente à figura de seu protagonista absoluto, guia da narrativa e má-consciência da sociedade, certamente originou uma série de precauções - e não falo aqui da "segurança" do material contra pirataria. Como narrador, o Capitão Nascimento era em Tropa de Elite a incarnação do herói ruim, do personagem perverso que serve como ponto de inflexão de uma história que o ultrapassa, complexa demais, e para a qual a postura de relato é inadequada, pois há um imperativo de posicionamento. Fechado este capítulo, prosseguir na narrativa implicava, necessariamente, retomar o personagem, acompanhá-lo nos desdobramentos de sua história pessoal. Ou, em outras palavras, assumi-lo de fato como herói da trama, retirando-lhe o manto de ambiguidade - justamente o elemento responsável por grande parte da força de impacto do primeiro filme. E a operação não é levada a cabo sem perdas, naturalmente.

Nascimento deixa de ser um homem de ação para ser um homem de discurso. No processo, o que era relato, ou puro fluxo de consciência, torna-se enunciação organizada e direcionada, capitaneada pela mesmíssima determinação interior duvidosa que gerava a violência inominável em Tropa de Elite. A diferença é que lá a adesão era a própria figura da crise, aquilo que provocava a reflexão ao remeter ao mundo aqui fora, e tornava o filme mais um happening interativo do que uma obra de ficção encerrada em si. Já neste segundo filme, a adesão é um pressuposto naturalizado, nunca ameaçado, é a base para que se organizem todas as imagens - assim como os próprios acontecimentos do roteiro. O Capitão Nascimento teria finalmente se tornado incontestável.

O novo Capitão Nascimento ocupa um cargo público e assumiu sem pudores seu olhar sobre a correção dos desvios sociais como um conhecimento a ser replicado. Mudou o inimigo, mas não a mentalidade de combate ao crime. Detentor do saber (que inclui rever seu próprio passado assassino), o personagem avança obstinado com seu senso de justiça, tal qual um justiceiro solitário, e o espectador é convidado a se identificar plenamente com o que o move, pois suas palavras agora emergem legitimadas. Na ânsia de afastar o carismático personagem da pecha de fascista, Padilha passa a verdadeiramente flertar com o fascismo. Afinal, o senso de retidão de Nascimento permanece invariavelmente ligado à sua mentalidade militarista. Uma fala como: "imagina se a gente fosse trabalhar deputado que nem trabalha vagabundo" é um perfeito exemplo disto. A equivocidade da disposição do BOPE desapareceu, pois esta disposição foi interiorizada a ponto de abandonar a ação da qual era parte integrante para ir servir a outro contexto de "batalha", mais elevado, mais sutil. Mas ela permanece essencialmente lá, como o grande motor propulsor do herói. Os fins justificam os meios.

Nascimento é, sob vários aspectos, um personagem fordiano (e seria ainda mais, não fosse esta identificação tornada obrigatória e o tom professoral adquirido por sua narração excessivamente auto-consciente). Caminhando em direção a um isolamento inexorável, ele termina sem lugar no mundo, pois não há espaço capaz de abrigar seu ímpeto. Ele é ao mesmo tempo o escolhido e o condenado, aquele que encampa a missão de defender a sociedade (de si mesma?), mas que não poderá nela permanecer. Que será expelido, renegado, uma vez tendo cumprido seu papel. Como espírito determinado, ele não se contenta em apenas servir aos propósitos a que é designado, ele é guiado por um imperativo moral que o impede de estabelecer tais limites e não irá parar, mesmo que o preço de defender a sociedade seja aniquilá-la.

A diferença de Nascimento para um herói de Ford é que na obra do cineasta americano há uma distância fundamental entre a narração do filme e a consciência do personagem. E, não havendo em Tropa 2 imagem que afronte a verdade da narração de Nascimento como no primeiro filme, em que tudo era crise, sua perspicácia torna-se palavra de ordem e toda e qualquer ação sua passa a ser autorizada. Some-se a isto um ganho de vida pessoal pelo viés do drama e tem-se desenhado um arcabouço discursivo dificilmente desmontável, em que o questionamento perde significativamente espaço. Ao invés do choque de forças de uma ação (gráfica, material, real), que proporcionava um retrato de mundo extremamente inquisitório (sobretudo em relação ao espectador), temos um intricado labirinto de fatos e conclusões que entrega um processo reflexivo pronto.

Ainda assim, há complexidade e nuances suficientes no próprio processo de raciocínio do personagem para rechaçar conclusões rápidas e fáceis. Ao sair da rua e afastar-se das dualidades estereotípicas mais correntes, Nascimento contempla, enfim, "o sistema". O tráfico deixa de ser objeto, causa, e passa a ser, de certa forma, efeito - ainda que o filme careça totalmente de qualquer discurso social aparentado àquele que servia de base para Ônibus 174. O escopo se abre, indo em busca da máquina por trás da guerra, das manobras por trás das operações visíveis. Esta mudança de escala de visão é realizada a partir de um ponto de vista "evolutivo": a narrativa é diacrônica e o raciocínio progressivo (o que implica, naturalmente, que o personagem não será o mesmo ao final do filme). Pressupõe-se que o espectador acompanhará este ganho de consciência com o personagem, passando o foco do "marginal" para a sociedade como um todo. Não à toa, apesar de tudo, Nascimento termina o filme dizendo: "não sei por que matei, não sei por quem matei".

Sendo o impulso de mapeamento e compreensão da realidade brasileira que move o cinema de Padilha profundamente ancorado num desejo de tese, é natural que se parta do particular (o confronto localizado do primeiro filme) para um dia chegar à estrutura, e que este caminho privilegie alguns cenários em detrimento de outros. Contudo, neste segundo momento, manter um narrador implicado de forma controversa na própria narrativa inevitavelmente compromete os pesos e medidas deste desejo de compreensão, na medida em que o alargamento do escopo complexifica as escolhas e torna mais visíveis as eleições e descartes no processo de cartografia. Em Tropa 2, portanto, a ausência de um raciocínio que contemple os desfavorecidos, ou, no vocabulário do filme, os "favelados", é infinitamente mais incômoda do que no primeiro filme, em que estes não pertenciam diretamente à equação de guerra que compunha o cenário enfocado.

Claro, estamos sob a tutela narrativa de um personagem militar incorruptível, cujas ações são marcadas pela radicalidade (e não seria este justamente o motivo dele ter se convertido em herói?). Por maior que seja seu ganho de consciência reflexiva, Nascimento permanece um militar que acredita no confronto. Ele não é capaz de ver os "inocentes" mortos em operações policiais como nada além de má publicidade e a favela como nada além de terreno de guerra, pois possui um escopo limitado à sua experiência – ainda que possua uma compreensão capaz de alargar-se progressivamente. As necessidades da narrativa acabam por dobrá-lo aqui e ali, mas não em todos os pontos críticos, o que origina uma instância narrativa problemática. Afinal, compor um personagem fiel a si mesmo capaz de mudar no decorrer do tempo não é tarefa simples. E, mesmo que ele se mostre satisfatoriamente coerente, talvez este fosse o momento de abandonar a sua voz e acompanhá-lo como mais uma peça no tabuleiro.

Ao ficcionalizar aquilo que se furta à ficção: o conteúdo (oculto) do telejornal, Padilha põe em cena uma crônica urbana impensável, recheada de personagens improváveis. Este universo, na medida em que sanciona um folclore popular, visa a funcionar também como educação política – e este talvez seja o movimento inaugural da "franquia". O espelhamento entre filme e mundo é essencial à fruição da obra e o espectador é constantemente interpelado, para além de qualquer processo de identificação. A partir do retrato de um cosmos cujo dinamismo reinventa as regras e reposiciona as peças a todo instante, rechaçando toda e qualquer intervenção e não deixando espaço de manobra, a obra encontra, enfim, sua força no sentimento de perplexidade – cuja potência deve ser suficiente para causar o impacto que leve alguém à ação.

Ao final, quando o cerco se fecha e Nascimento perde seu espaço, dando seu grande salto de clarividência e inteligência política para poder se recolocar no mundo, há um impressionante e profundamente incômodo plano que sobrevoa Brasília, em que a voz off do personagem estabelece um paralelo com o último plano do primeiro filme, no qual o fuzil era apontado para a câmera. Neste trecho, ele pergunta: "E sabe quem sustenta isso tudo?". A resposta está ausente, mas a dedução lógica aponta para o espectador. No raciocínio a seguir, em que ele indaga sobre possíveis saídas, há outra palavra ausente que conclui com perspicácia todo o processo do filme: "voto". Não há dúvidas, trata-se de um filme que não encontra sua realização na encenação ou na fruição individual na sala fechada do cinema, mas nas ruas e em debates e questionamentos. Uma obra para ser vista à luz do espaço público, com a necessária atenção e cautela.

Tatiana Monassa


 Novembro de 2010