You can’t look at the light.
Don’t
look at the light, Bennie.
Não
são
os contrastes e meios-tons elegantes da película que banham
as
imagens em preto e branco de Tetro, mas um cinza
árido,
resultado da captação em digital. Prova, em
primeiro
lugar, de que o uso do preto e branco para Coppola aqui de forma
alguma se reduz à mera perfumaria. Mas ele tampouco
é
usado como um recurso de linguagem óbvio, por exemplo como
metáfora sobre a condição dos
personagens. A
importância do preto e branco para o filme é vital
e se
liga à própria importância da luz, que
vai muito
além do leitmotiv narrativo representado pela
lâmpada
para qual se deve evitar o olhar a todo custo, sob pena desta causar
cegueira e destruição (“Não
olhe para a
luz, Bennie”, diz Tetro). A luz aqui é a
própria
matéria do filme. Não à maneira de um
simples
teatrinho de sombras, mas como uma superfície, um corpo onde
se gravam as imagens do filme, que irão do cinza batido
inicial à opacidade completa.
Apesar
de realizar um
conto familiar de tons expressionistas, Coppola não recorre
aqui ao dispositivo e ao ponto-de-vista como capas que filtrem e
protejam o material sob o teto da percepção. O
olhar do
filme não se filia nem a Bennie nem a Tetro. A
ficção
se livra de seus estratagemas para se tornar apenas aquilo que
é:
uma aventura ambiciosa e delirante, o roteiro poluído e
pesado, cheio de flashbacks, passagens
alegóricas e uma
fauna extensa de personagens. As imagens são expostas
à
vulnerabilidade da ficção – expostas,
primeiro,
ao seu próprio mau gosto, mas também ao mau
entendimento e à
não-identificação do
público. Para Coppola, vale menos a idéia e mais
o
trabalho com o próprio material cinematográfico:
sua
carne/fio condutor (a luz) e seu motor ficcional (o esclarecimento,
que se encontra amarrado na fronteira da opacidade).
Vem
em parte daí
o percurso cego que se realiza com o filme. Tateia-se mais do que
propriamente se contempla a narrativa, o drama familiar cinzento e
figuras burlescas em meio a enormes vãos de luz e
escuridão.
Mas não há trompe l’oeils
aqui, apenas um
movimento contínuo rumo a uma opacidade desarmante. A
dramaturgia de Tetro é como um
poço no qual é
preciso afundar-se até o fim não para ver a luz,
mas,
justamente, sua opacidade – seus contornos, formas, cores;
apenas isso. O que dizer da cena em que Tetro revela a Bennie que
é
seu próprio pai? Uma cena dura, uma imagem destacada do
resto
(dos fantasmas aterrorizantes do resto), uma
opacidade contra
a qual é impossível lutar.
Voltando
ao início,
há apenas quatro cores em Tetro: preto,
branco, cinza e
colorido (que talvez pudesse ser lido apenas como vermelho).
É
através desta paleta rudimentar que Coppola recupera a
palpabilidade da imagem. Tudo é palpável em Tetro:
o segredo familiar, todos os personagens coadjuvantes burlescos, a
própria luz – que invariavelmente
causará
cegueira ou o mergulho na escuridão. É preciso
conviver
com essas formas como numa espécie de teatro de imagens,
aceitá-las em sua literalidade caricatural e
simbólica.
Os flashbacks
e
cenas em colorido que apresentam encenações de
uma
ópera são menos faróis elucidadores de
uma
consciência do que meros entroncamentos narrativos
– é
a narrativa também como matéria que
está em
jogo. Como Lynch, Coppola vê a ficção
como
matéria. É o trabalho do cineasta se
debruçar
frontalmente sobre os materiais cinematográficos:
texturas, cores, luz, profundidade de campo,
movimentação
de câmera. É unicamente por isso que os filmes de
Lynch
resistem às
associações tolas que se
costuma fazer entre seus filmes e os fluxos de consciência.
Também é inútil recorrer à
psicanálise
em Tetro: a luz não é uma
fobia identificável
ou a porta direta para um trauma passado. As cenas em colorido,
apesar de infundirem na narrativa um certo teor sexual banido da
parte “cinza”, de modo algum empurram-na em
direção
à visão do complexo edipiano. A
ficção
visceral é aquela que atravessa todas as idéias,
que
resiste – para que no fim possam sobrar
apenas suas
imagens e formas.
***
Impressiona
como mesmo
partilhando de mil atributos do estereótipo de
“filme
independente” regurgitado pelo nosso jornalismo cultural
(“baixo-orçamento”,
locações na
Argentina, fotografia em preto e branco e presença de um dos
atores cools do momento – Vincent Gallo),
o filme
consiga ainda assim rechaçar este estereótipo
violentamente – é a ficção
que resiste à
categorização. A crítica
também fará
a sua parte nesta cruzada esvaziadora: uns vão elogiar a
capacidade inventiva do roteiro enquanto outros vão
considerá-lo gordo, inchado, eventualmente confuso.
Francamente, pouco importa se o roteiro é ágil ou
obeso. Importa a relação que um cineasta
estabelece com
os seus materiais, a vontade desesperada com que Coppola filma seu
teatro de imagens. E ele filmará até o fim,
porque é
um cineasta de verdade (não é autor, artista ou
coisa
que o valha). É isso que dá a Tetro,
a despeito
de sua aparência irregular e feia, um aspecto verdadeiramente
sublime: é um roteiro filmado até o fim,
inconsequentemente até o fim.
Calac Nogueira
Dezembro de 2010
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