O VENCEDOR
David O'Russell, The Fighter, EUA, 2010

O Vencedor já começa “dentro” da imagem de outra câmera, material de um documentário do qual desconhecemos os realizadores, mas cujo objeto reconhecemos muito bem: Dicky Eklund (Christian Bale), sozinho na tela, a dizer qualquer coisa, quem sabe respondendo a uma pergunta do entrevistador invisível, oculto pela própria interface da câmera. Dicky confessa que se trata de um documentário sobre a vida dele, boxeador que nocauteou certa vez Sugar Ray – é o que ele diz, os documentaristas nada falam. Espontaneamente, abraça seu irmão, Micky (Mark Wahlberg), e o convida para entrar no écran – Dicky, Micky e o sofá da sala compõem esse cartão-postal familiar na versão vídeo, vídeo ao qual nem terão acesso e que nem foram eles que realizaram. De forma espelhada, a tela negra dos créditos finais oferece um pequeno território para o retângulo de uma nova imagem digital, novamente um registro documental em que os mesmos irmãos, só que agora os da vida real, os objetos originais nos quais se baseia esta ficção, estão juntos, mas não mais em seu domicílio, e sim em um bar, um ambiente público com o qual compartilham a “homenagem” – sempre constrangedora – de uma filmagem. E ainda: no clímax, na luta que pode consagrar Micky como World Champion – naquela história do rival arrogante e invencível que só pode ser superado pela redenção cristã através do sofrimento do herói –, o diretor David O. Russell desperta o impulso dramático ao utilizar imagens televisivas que transmitem o espetáculo, bem como sua narração em off, em um êxtase muito bem ensaiado pelos comentaristas deste tipo de esporte.

Ora, caso víssemos a tal luta pela televisão, na comodidade dos nossos sofás, o efeito desta narração radiofônica, dos comentários mais sensacionalistas, do ritmo disperso e vago das imagens – infelizmente – não incomodaria, pois identificamos tal atentado visual e cognitivo, tal deturpação do que se efetivamente, como “a televisão”. Mas cinema não é televisão. A questão aqui está longe da teledramaturgia ou da incorporação da imagem televisiva como matéria-prima para o cinema (a exemplo do recente Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho). Trata-se de uma situação mais delicada, até mesmo sutil, em que o recurso dramático investido pelo diretor é o reconhecimento de uma convenção e o efeito ideal que esta nos deveria proporcionar na televisão. É que Russell, ciente de que faz cinema, extrai a histeria da locução, desvinculando-a do “ao vivo” da TV e reforçando seu efeito tão particular enquanto “linguagem cinematográfica”. Por que ele faz isso? É óbvio: Russell confunde cinema com televisão, substitui um pelo outro (é diferente de confrontá-los ou de procurar uma alquimia entre eles). Se o seu grande insight de recurso dramático são as imagens e os sons provenientes da TV, então não faça um filme. Locutores esportivos já são o colapso da mediocridade moderna por si só, ali no quadrado da TV. Ao considerá-los dignos por suas frases de efeito, ele sugere que somente pela televisão poderíamos compreender o lado enérgico e mesmo mítico daquela luta, como se não houvesse espetáculo por si só, pelos boxeadores, por todas as pessoas ali presentes torcendo e vibrando, estupidamente ou não, mas sim pelo coroamento que somente a televisão poder dar, pela “transcendência” da TV – pela resignação do espectador a essa convulsão forçada, preparada.

O cinema, nos ensina Bazin, é arte impura – ou, como nos diz Rohmer, “o rio imenso no qual os inúmeros córregos das artes ditas menores terminam por desaguar”. Mas a televisão não é arte, nem “arte menor”. Ela está, sem dúvidas, presente nas nossas vidas, bem como na vida dos retratados, e é claro que podemos encená-la. Mas não podemos deixar que ela nos encene. Os documentaristas mudos de Bale, os locutores esquizofrênicos do esporte, o minuto estúpido no final quando podemos finalmente consagrar o real através dos personagens e seus nomes próprios, todos são casos em que quem encena é a TV – ou a coitada da camerazinha digital, tão inofensivamente leve, tão fragilmente móvel... É notável que os realizadores do documentário sobre Dicky estejam sempre ausentes, sempre em um terrível e inominável fora-de-quadro, ao contrário de qualquer outro personagem (mesmo os coadjuvantes como os traficantes de drogas, a namorada asiática de Dicky, Sugar Ray etc.). Como os locutores televisivos da luta final, são espectadores privilegiados, pois são eles que registram, e isso os liberta de uma existência concreta. É o registro que importa, é Dicky fumando crack em uma câmera digital, não quem o está registrando. Dicky pertence ao vídeo não por privilégio, mas por degradação; é o vídeo que impõe a degradação, da mesma forma que são os narradores exaltados quem impõem a consagração de Marky.

Só a televisão faz julgamento de valor. Só com ela podemos ascender à glória ou desvendar a decadência. Não que, contrariamente, quando em suporte “cinematográfico” (imagem mais definida, a textura “profissional”), estejamos em um mundo livre destes julgamentos. Em O Vencedor, se a televisão testemunha a degradação de Dicky, não será o filme que apresentará um dado novo. O que é o cinema, então? As sequelas de um Christian Bale histriônico, o rosto pétreo de uma Amy Adams que não consegue precisar a tenacidade de sua personagem, uma pobreza moral e financeira caracterizada a fórceps pelo seu elenco bonitinho.

João Gabriel Paixão


 Fevereiro de 2011