O Vencedor já
começa “dentro” da imagem de outra câmera, material de um documentário do qual
desconhecemos os realizadores, mas cujo objeto reconhecemos muito bem: Dicky
Eklund (Christian Bale), sozinho na tela, a dizer qualquer coisa, quem sabe respondendo
a uma pergunta do entrevistador invisível, oculto pela própria interface da câmera.
Dicky confessa que se trata de um documentário sobre a vida dele, boxeador que
nocauteou certa vez Sugar Ray – é o que ele diz, os documentaristas nada
falam. Espontaneamente, abraça seu irmão, Micky (Mark Wahlberg), e o convida
para entrar no écran – Dicky, Micky e o sofá da sala compõem esse cartão-postal
familiar na versão vídeo, vídeo ao qual nem terão acesso e que nem foram eles
que realizaram. De forma espelhada, a tela negra dos créditos finais oferece um
pequeno território para o retângulo de uma nova imagem digital, novamente um
registro documental em que os mesmos irmãos, só que agora os da vida real,
os objetos originais nos quais se baseia esta ficção, estão juntos, mas não
mais em seu domicílio, e sim em um bar, um ambiente público com o qual
compartilham a “homenagem” – sempre constrangedora – de uma
filmagem. E ainda: no clímax, na luta que pode consagrar Micky como World Champion – naquela história do rival arrogante e invencível que só pode ser
superado pela redenção cristã através do sofrimento do herói –, o diretor
David O. Russell desperta o impulso dramático ao utilizar imagens televisivas
que transmitem o espetáculo, bem como sua narração em off, em um êxtase muito
bem ensaiado pelos comentaristas deste tipo de esporte.
Ora, caso víssemos a tal luta pela televisão,
na comodidade dos nossos sofás, o efeito desta narração radiofônica, dos
comentários mais sensacionalistas, do ritmo disperso e vago das imagens –
infelizmente – não incomodaria, pois identificamos tal atentado visual e
cognitivo, tal deturpação do que se vê efetivamente, como “a televisão”.
Mas cinema não é televisão. A questão aqui está longe da teledramaturgia ou da
incorporação da imagem televisiva como matéria-prima para o cinema (a exemplo do
recente Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho). Trata-se de uma situação mais
delicada, até mesmo sutil, em que o recurso dramático investido pelo diretor é
o reconhecimento de uma convenção e o efeito ideal que esta nos deveria proporcionar na televisão. É que Russell, ciente de que faz cinema, extrai a histeria
da locução, desvinculando-a do “ao vivo” da TV e reforçando seu efeito tão
particular enquanto “linguagem cinematográfica”. Por que ele faz isso? É óbvio:
Russell confunde cinema com televisão, substitui um pelo outro (é diferente de
confrontá-los ou de procurar uma alquimia entre eles). Se o seu grande insight de recurso dramático são as imagens e os sons provenientes da TV, então não faça
um filme. Locutores esportivos já são o colapso da mediocridade moderna por si
só, ali no quadrado da TV. Ao considerá-los dignos por suas frases de efeito, ele
sugere que somente pela televisão poderíamos compreender o lado enérgico e
mesmo mítico daquela luta, como se não houvesse espetáculo por si só, pelos
boxeadores, por todas as pessoas ali presentes torcendo e vibrando,
estupidamente ou não, mas sim pelo coroamento que somente a televisão poder
dar, pela “transcendência” da TV – pela resignação do espectador a
essa convulsão forçada, preparada.
O cinema, nos ensina Bazin, é arte impura
– ou, como nos diz Rohmer, “o rio imenso no qual os inúmeros córregos
das artes ditas menores terminam por desaguar”. Mas a televisão não é arte, nem
“arte menor”. Ela está, sem dúvidas, presente nas nossas vidas, bem como na
vida dos retratados, e é claro que podemos encená-la. Mas não podemos deixar
que ela nos encene. Os documentaristas mudos de Bale, os locutores esquizofrênicos
do esporte, o minuto estúpido no final quando podemos finalmente consagrar o real através dos personagens e seus nomes próprios, todos são casos em
que quem encena é a TV – ou a coitada da camerazinha digital, tão
inofensivamente leve, tão fragilmente móvel... É notável que os realizadores do
documentário sobre Dicky estejam sempre ausentes, sempre em um terrível e
inominável fora-de-quadro, ao contrário de qualquer outro personagem (mesmo os
coadjuvantes como os traficantes de drogas, a namorada asiática de Dicky, Sugar
Ray etc.). Como os locutores televisivos da luta final, são espectadores
privilegiados, pois são eles que registram, e isso os liberta de uma
existência concreta. É o registro que importa, é Dicky fumando crack em uma câmera
digital, não quem o está registrando. Dicky pertence ao vídeo não por privilégio,
mas por degradação; é o vídeo que impõe a degradação, da mesma forma que
são os narradores exaltados quem impõem a consagração de Marky.
Só a televisão faz julgamento de valor. Só
com ela podemos ascender à glória ou desvendar a decadência. Não que, contrariamente,
quando em suporte “cinematográfico” (imagem mais definida, a textura “profissional”),
estejamos em um mundo livre destes julgamentos. Em O Vencedor, se a
televisão testemunha a degradação de Dicky, não será o filme que apresentará um
dado novo. O que é o cinema, então? As sequelas de um Christian Bale histriônico,
o rosto pétreo de uma Amy Adams que não consegue precisar a tenacidade de sua
personagem, uma pobreza moral e financeira caracterizada a fórceps pelo seu
elenco bonitinho.
João Gabriel Paixão
Fevereiro
de 2011
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