O cinema parece ter vocação para a
possessão demoníaca. Há uma série de semelhanças entre um e outro. O ator, por
exemplo, assim como o possuído, é um ser que empresta o corpo a uma entidade –
o personagem. Sendo assim, este corpo move-se e comporta-se de maneira que não
é a do ator, é a de uma força maior. O mesmo acontece no teatro,
evidentemente. O específico cinematográfico está na dublagem: a boca que
deixa sair uma voz que não é a original, que pertence a outro, é uma das marcas
da possessãao e, também, de cinematografias adeptas da técnica da pós-sincronização.
Não causam surpresa, portanto, as ocasionais retomadas do subgênero na
indústria. O Ritual, projeto que não é uma adaptação cinematográfica de
um livro, algo comum neste tipo de filme, mas sim um filme “sugerido” (o
crédito é exatamente este) pelo romance de Matt Baglio, tem em Anthony Hopkins
a figura do possuído da vez.
A partir destes dois dados (Hopkins e o
livro de Baglio) o espectador, já nos créditos iniciais – ou antes mesmo
de entrar no cinema – pode supor o que encontrará pela frente: um produto
de exorcismo sério, em que Hopkins, uma hora ou outra, revelará a verdadeira
face/verdadeiro corpo. E o verdadeiro corpo de Hopkins-ator, da persona Hopkins,
é o dos frios olhos azuis, cuja pele debaixo das sobrancelhas, como os
resquícios de uma cortina em uma casa velha, lhe cai sobre as pálpebras, dando-lhe
o aspecto de alguém maligno, cansado e que nunca ri. Hopkins não ri, Hopkins
come carne humana. Enquanto está possuído momentaneamente por um espírito
bondoso, o do padre Lucas, um religioso que domina como poucos a arte do
exorcismo, Hopkins atua no papel de mentor do padre Michael (Colin O´Donoghue).
Não demora muito para que o espírito do
bem dê lugar ao Hopkins que todos conhecemos. É quando O Ritual fica um
pouco mais interessante. Afinal, o que tínhamos antes era um comportado filme
católico, com o padre Lucas agindo um pouco como o senhor Miyagi, naquela
mistura de charlatanismo e sabedoria de biscoito da sorte de fast food chinês. É preciso admitir, no entanto, que esta postura – autoconsciente –
gera momentos genuinamente engraçados, como aquele em que, no meio de um
exorcismo, toca o celular do mestre, que atende e ordena ao pupilo
completamente despreparado: “assume aí”.
Michael assume e, dali em diante, inicia-se
o processo de substituição espiritual. O jovem, anteriormente um cético, passa
a acreditar no diabo – “não aceitar que o mal existe não lhe protegerá
dele” é uma idéia difundida pelo longa. Substituição do gênero do filme também,
que gradativamente aproxima-se do horror. Hopkins pode, finalmente, demonstrar
suas expressões malvadas – o que ele faz muito bem, é claro. Mikael
Håfström, então, tranca os personagens em um cômodo e o que acompanhamos não é
o exorcismo do padre Lucas realizado pelo padre Michael, mas, o ápice do ritual
de transformação que se iniciou minutos antes: Hopkins dando lugar à sua persona.
Seria o cinema uma forma de possessão? Em
um sentido ligeiramente diferente dos filmes de exorcismo, talvez: o cinema,
este criador de estátuas e ídolos, exige a eterna incorporação, por parte de
intérpretes como Hopkins, de personalidades criadas pelos próprios atores.
Personalidades que podem ser frutos de seus próprios demônios ou apenas invenções
de objetivos puramente comerciais. Poucos conseguem (ou querem) exorcizar-se.
Hopkins não é um deles.
Wellington Sari
Fevereiro
de 2011
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