O REFÚGIO
François Ozon, Le Refuge, França, 2009

Marie Rivière está neste novo filme de François Ozon, em uma cena na praia, para não termos dúvida da referência a Rohmer. Como em Rohmer, o mundo em O Refúgio se presentifica na tela como se fosse óbvio, como se a força da causalidade possibilitasse a transparência do que vemos. Ou, ainda como Rohmer, uma protagonista atrás de algo que lhe faça sentido, que dê significado a sua própria vida. Só que aqui não veremos jamais o raio verde. Mousse (Isabelle Carré), à imagem das protagonistas de Rohmer, é agitada, impaciente, não sabe muito bem onde ir ou o que esperar do mundo. Uma obsessão (seu raio verde) preencheria a solidão que ela tem diante do mundo, mas, ao contrário, o filme se realiza nesta ausência de obsessão, no aproveitamento do acaso, na possibilidade contínua de fuga. Falta uma necessidade a Mousse, e é isso que lhe traz disponibilidade e descompromisso. Ela é uma órfã do mundo.

Já vimos filmes com tal protagonista diversas vezes (existe mesmo uma incapacidade atual de colar o homem ao fundo da história, do social, do material, etc), em geral com um distanciamento “filosófico” do narrador como se medisse a desolação do personagem, como se pudesse preencher no espaço a ausência do destino. Tais filmes costumam ter um amontoado desorganizado de cenas, porque elas importam menos que um sentimento de totalidade, do qual a dispersão seria a representação desta totalidade. Essa totalidade é a de um mundo conspiratório que, em seu caos, impõe artimanhas e atalhos que vão compor a trajetória multifacetada do personagem. São casos em que Deus joga dados. Portanto, não há destino, mas ainda se precisa de sorte.

Pois bem, em O Refúgio, Mousse não é a soma das experiências de uma trajetória, mas a vontade e a transparência do trajeto. Ela tem desejos, e trilha um caminho a partir deles. Ela rejeita, ao mesmo tempo, a noção de destino e também a aleatoriedade destes filmes de ausência do destino. Portanto, o que vemos é uma seqüência de cenas que se seguem de forma coesa, mas que resultam de um conhecimento cada vez menor da protagonista, de saber antecipar cada vez menos seu comportamento. É um caminho feito não de somas, mas de subtrações.

Para acompanhar sua protagonista, François Ozon precisa se exercitar, um jogging no trabalho de direção. Confesso que não sou muito de fazer exercícios, mas reconheço que um jogging possa ser prazeroso. É um prazer enganador, ou muito passageiro, mas também lhe oferece algo saudável.

E O Refúgio é um filme saudável. Ele mantém um ritmo impressionantemente regular, o que lhe dá força à individualidade das cenas e leveza à fruição, e ainda se deixa banhar pela luminosidade matinal que se irradia no percurso. Mas o que é mais saudável é que se corre não por perseguir o acaso, mas justamente para fugir dele. O que movimenta Ozon é a importância de cada cena, o vigor analítico de apresentá-la (a relação entre Mousse e Paul perfeitamente incorporada pelo comportamento da câmera), a exigência da transparência em encená-la (a gravidez que denuncia a perda; Mousse, por sua vez, à busca de se afastar do espírito materno). É assim que ele conquista algumas cenas formidáveis, como na entrega gentil ao sexo por Mousse e Paul, ou na boate em que a distância da câmera compreende a desolação de Mousse naquele ambiente.

João Gabriel Paixão


Setembro de 2010