Marie
Rivière
está neste novo filme de François Ozon, em uma
cena na
praia, para não termos dúvida da
referência a
Rohmer. Como em Rohmer, o mundo em O Refúgio
se
presentifica na tela como se fosse óbvio, como se a
força
da causalidade possibilitasse a transparência do que vemos.
Ou,
ainda como Rohmer, uma protagonista atrás de algo que lhe
faça
sentido, que dê significado a sua própria vida.
Só
que aqui não veremos jamais o raio verde. Mousse (Isabelle
Carré), à imagem das protagonistas de Rohmer,
é
agitada, impaciente, não sabe muito bem onde ir ou o que
esperar do mundo. Uma obsessão (seu raio verde) preencheria
a
solidão que ela tem diante do mundo, mas, ao
contrário,
o filme se realiza nesta ausência de obsessão, no
aproveitamento do acaso, na possibilidade contínua de fuga.
Falta uma necessidade a Mousse, e é isso que lhe traz
disponibilidade e descompromisso. Ela é uma
órfã
do mundo.
Já
vimos filmes
com tal protagonista diversas vezes (existe mesmo uma incapacidade
atual de colar o homem ao fundo da história, do social, do
material, etc), em geral com um distanciamento
“filosófico”
do narrador como se medisse a desolação do
personagem,
como se pudesse preencher no espaço a ausência do
destino. Tais filmes costumam ter um amontoado desorganizado de
cenas, porque elas importam menos que um sentimento de totalidade, do
qual a dispersão seria a representação
desta
totalidade. Essa totalidade é a de um mundo
conspiratório
que, em seu caos, impõe artimanhas e atalhos que
vão
compor a trajetória multifacetada do personagem.
São
casos em que Deus joga dados. Portanto, não há
destino,
mas ainda se precisa de sorte.
Pois
bem, em O
Refúgio, Mousse não é a soma
das
experiências de uma trajetória, mas a vontade e a
transparência do trajeto. Ela tem desejos, e trilha um
caminho
a partir deles. Ela rejeita, ao mesmo tempo, a
noção de
destino e também a aleatoriedade destes filmes de
ausência
do destino. Portanto, o que vemos é uma
seqüência
de cenas que se seguem de forma coesa, mas que resultam de um
conhecimento cada vez menor da protagonista, de saber antecipar cada
vez menos seu comportamento. É um caminho feito
não de
somas, mas de subtrações.
Para
acompanhar sua
protagonista, François Ozon precisa se exercitar, um jogging
no trabalho de direção. Confesso que
não sou
muito de fazer exercícios, mas reconheço que um jogging
possa ser prazeroso. É um prazer enganador, ou muito
passageiro, mas também lhe oferece algo saudável.
E O
Refúgio
é um filme saudável. Ele mantém um
ritmo
impressionantemente regular, o que lhe dá força
à
individualidade das cenas e leveza à
fruição, e
ainda se deixa banhar pela luminosidade matinal que se irradia no
percurso. Mas o que é mais saudável é
que se
corre não por perseguir o acaso, mas justamente para fugir
dele. O que movimenta Ozon é a importância de cada
cena,
o vigor analítico de apresentá-la (a
relação
entre Mousse e Paul perfeitamente incorporada pelo comportamento da
câmera), a exigência da transparência em
encená-la
(a gravidez que denuncia a perda; Mousse, por sua vez, à
busca
de se afastar do espírito materno). É assim que
ele
conquista algumas cenas formidáveis, como na entrega gentil
ao
sexo por Mousse e Paul, ou na boate em que a distância da
câmera compreende a desolação de Mousse
naquele
ambiente.
João Gabriel Paixão
Setembro de 2010
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