Seria Tony Scott o maior dos
aristotélicos, depois de Aristóteles? A julgar
pela maneira (tão hiperbólica quanto a pergunta) com
que, em seus filmes, tudo que é, é, poderíamos
quase pensar que sim. No cinema do irmão de Ridley,
o negro sábio é o negro sábio, o galã é o galã, o gordo
patético é o gordo patético. Incontrolável apresenta,
como ditam as regras douradas do roteiro hollywoodiano,
estes três tipos já no início da narrativa. O que faz,
é claro, com que antecipemos muito facilmente a rota
que seguirá o filme: o gordo irá fazer uma besteira
que o galã consertará, ajudado pelo negro sábio.
O uso de personagens tipificados, de destino
pré-determinado – qual um trem – é recorrente na filmografia
do diretor. Neste novo longa metragem, curiosamente,
o emprego de figuras codificadas parece atingir um nível
mais radical do que anteriormente.
Tal superficialidade no tratamento dos personagens vem
anexada a outra característica marcante de Scott: a
imutabilidade. Em geral, quem é bom termina bom,
quem é mau termina mau, não há lição a ser aprendida.
O modo pelo qual se dá esta articulação é muito mais
próximo, algo talvez já notório por si, da publicidade
do que de quaisquer jogos com simbolismos ou arquétipos.
A aproximação fica ainda mais demarcada se nos voltarmos
para a forma, desta vez totalmente mutável, seguidora
de tendências, criadora de um mundo tão artificial quanto
quase todo produto anunciado por um comercial qualquer
(cinema comercial, publicidade; não estaríamos falando
da mesma coisa?): Incontrolável, um filme de
trem de carga, logo um filme que se passa em um universo
do trabalho, do esforço, do peso, da sujeira, esforça-se
para, a todo momento, colocar entre a imagem e o espectador
a ferrugem, a fumaça, a poeira, a partícula, enfim.
Partícula falsa, como as gotas de água que insistem
em escorrer na janela da cabine do trem, mesmo sem chuva,
toda vez em que Denzel Washington é filmado através
do vidro. Ou, ainda, do grão na imagem, que emula uma
condição de filmagem de baixa luminosidade que jamais
foi experimentada pelos realizadores (exemplo cômico
da partícula falsa: Tom Cruise, triunfante, ao final
da última corrida em Dias de trovão, com o rosto
completamente pintado de preto, como se saísse não de
um carro, mas de uma mina de carvão). Uma analogia apocalíptica
não seria a da máscara? Mascarar, encobrir. Não é disso
que sempre se ocupam os publicitários? Outra vez: colocar
entre o espectador e o objeto filmado algo que dê ao
último uma aparência diferente. E, neste mundo, diferente,
significa melhor, mais bonito, mais real.
Mas aí entram em cena os paradoxos. Nada é tão fácil
quanto chamar Scott de publicitário. De fato, o cineasta
emprega diversos procedimentos típicos da propaganda,
como vimos. No entanto, ao se deixar de lado as lentes
do lugar comum, percebem-se algumas contradições bastante
interessantes em Incontrolável:
1. Se uma parte do universo do cineasta gira em torno
da não-mudança, da permanência, então não há como colocá-lo,
evidentemente, no centro do cinema comercial/publicitário
(falamos, acima, que a forma, em Scott, é mutável.
Sim, mas ela muda para continuar igual: filtros
fotográficos em Dias de trovão, no início da
década de 90, manipulação no shutter, grão na
imagem e câmera na mão, “realista”, em Incontrolável;
início da década de 20: trata-se sempre de filmar a
matéria com um baú de truques do momento à tiracolo).
Afinal, tal instância é, quase sempre, calcada justamente
na passagem de um ponto a outro. De zero a dez
– a ascensão é sempre meteórica e radical. Basta lembrar,
por exemplo, do comercial recente de uma marca de produto
odontológico que combate a sensibilidade nos dentes:
filmado à maneira das entrevistas jornalísticas, mostra
“transeuntes”, interpelados por um repórter que lhes
pede para participar de uma experiência, primeiro sofrendo
ao tomar algum líquido gelado e, em seguida, ao aplicar
a pasta de dentes anunciada, deslumbrando-se com suas
propriedades de cura. Da dor à epifania: a câmera captura,
“ao vivo” e sem pudor algum, a passagem de um estado
a outro (a utopia alquimista do cinema: capturar a passagem
de um estado a outro). Scott, já dissemos, também filma
Incontrolável seguindo convenções atuais do “realismo”.
O jornalismo televisivo desempenha, inclusive, papel
de muleta narrativa. Entretanto e apesar de tudo, em
nenhum momento o cineasta demonstra qualquer interesse
em captar a passagem. Só lhe interessa o trem
– o objeto concreto, a máquina, e não suas implicações
sociais ou morais –, o brinquedo que lhe possibilita
fazer o filme de ação. Aliás, o contrário: o filme só
existe graças à vontade do diretor em filmar o brinquedo.
A forma, em Scott, um diretor ou muito esperto – surfa
a onda do momento para conseguir maior aceitação, logo,
mais dinheiro – ou intelectualmente muito preguiçoso
– surfa a onda do momento porque todos estão surfando
–, é apenas a embalagem pela qual é necessário passar
para alcançar o maravilhoso trenzinho. Talvez por isso
Incontrolável pareça, algumas vezes, um tanto
feio. Quem sabe, e então chegamos finalmente a um grande
paradoxo, seja pelo fato de não existir em Incontrolável
a busca pela, aqui um termo de Daney, “imagem marcante”
– algo que pornograficamente faz a publicidade.
2. Como não simpatizar com a “inocência” de Scott em
posicionar sua câmera diante (ou melhor, dentro) do
ferrorama e se divertir com isto? Ver um brinquedo
gigante na tela, filmado de maneira “inocente”, não
causa apenas simpatia. Há o prazer da empolgação infantil,
barato e fugaz como um passeio no carrinho de bate-bate,
mas, ainda sim, genuíno. Existe uma força na presença
daquela máquina veloz, saltitando de plano a plano na
montagem pulsante empregada por Scott. Esta força, de
alguma forma, anula o natural estado de desconfiança
com que nos colocamos diante daquilo que se denomina
“ação descerebrada”. Um sentimento verdadeiramente primitivo,
anterior ao tédio do conhecimento daquelas imagens (tenho
a idéia do que são as imagens de coisas explodindo,
para que vê-las na tela, então, se já as vejo em minha
cabeça?) desperta, não do cérebro, é claro, mas do estômago.
Não é isso que deveriam proporcionar todos os filmes
de ação? Então por que não o fazem os atuais? Porque
são tecnicamente incompetentes? Porque não são inocentes
o bastante? Scott é.
3. Incontrolável não se interessa pelo que estará
lá adiante, ao final da rota, já que, é óbvio, nada
há, mas pelo prazer (lúdico?) que a percorrer causa.
Idéia velha, ao ponto de, atualmente, ter praticamente
sido esquecida. Quantos longas-metragens hollywoodianos
de ação trilham o caminho da singeleza nos últimos anos?
A maioria deles não seriam apenas ferroramas
de traçado óbvio enfeitados com mil e uma luzinhas a
fim de parecerem deslizar não sobre trilhos, mas navegar
nos complexos mares da contemporaneidade? Quantos mostram
sua face vulgar, feia e brutal diante de nós? (os carões
enrugados dos Mercenários são um alento). Nem
mesmo a burrice precisa ficar incógnita: o que é a seqüência
em que policiais decidem tentar deter o monstro de ferro
desgovernando usando atiradores de elite, para acertar
um botão de cinco centímetros em um trem que vaga a
mais de 200 quilômetros por hora, senão uma das seqüências
mais idiotas possíveis? Antes a burrice plena, filmada
com fé, do que a burrice disfarçada de auto-ironia e
hipocrisia (Adrenalina e afins).
Scott surfa a onda do momento, usando a prancha do momento
– mas o faz à sua maneira. Não que o cineasta seja um
gênio. Longe disso. Ele é o que é.
Wellington Sari
Janeiro
de 2011
|