INCONTROLÁVEL
Tony Scott, Unstoppable, EUA, 2010

Seria Tony Scott o maior dos aristotélicos, depois de Aristóteles? A julgar pela maneira (tão hiperbólica quanto a pergunta) com que, em seus filmes, tudo que é, é, poderíamos quase pensar que sim. No cinema do irmão de Ridley, o negro sábio é o negro sábio, o galã é o galã, o gordo patético é o gordo patético. Incontrolável apresenta, como ditam as regras douradas do roteiro hollywoodiano, estes três tipos já no início da narrativa. O que faz, é claro, com que antecipemos muito facilmente a rota que seguirá o filme: o gordo irá fazer uma besteira que o galã consertará, ajudado pelo negro sábio. O uso de personagens tipificados, de destino pré-determinado – qual um trem – é recorrente na filmografia do diretor. Neste novo longa metragem, curiosamente, o emprego de figuras codificadas parece atingir um nível mais radical do que anteriormente.

Tal superficialidade no tratamento dos personagens vem anexada a outra característica marcante de Scott: a imutabilidade. Em geral, quem é bom termina bom, quem é mau termina mau, não há lição a ser aprendida. O modo pelo qual se dá esta articulação é muito mais próximo, algo talvez já notório por si, da publicidade do que de quaisquer jogos com simbolismos ou arquétipos. A aproximação fica ainda mais demarcada se nos voltarmos para a forma, desta vez totalmente mutável, seguidora de tendências, criadora de um mundo tão artificial quanto quase todo produto anunciado por um comercial qualquer (cinema comercial, publicidade; não estaríamos falando da mesma coisa?): Incontrolável, um filme de trem de carga, logo um filme que se passa em um universo do trabalho, do esforço, do peso, da sujeira, esforça-se para, a todo momento, colocar entre a imagem e o espectador a ferrugem, a fumaça, a poeira, a partícula, enfim. Partícula falsa, como as gotas de água que insistem em escorrer na janela da cabine do trem, mesmo sem chuva, toda vez em que Denzel Washington é filmado através do vidro. Ou, ainda, do grão na imagem, que emula uma condição de filmagem de baixa luminosidade que jamais foi experimentada pelos realizadores (exemplo cômico da partícula falsa: Tom Cruise, triunfante, ao final da última corrida em Dias de trovão, com o rosto completamente pintado de preto, como se saísse não de um carro, mas de uma mina de carvão). Uma analogia apocalíptica não seria a da máscara? Mascarar, encobrir. Não é disso que sempre se ocupam os publicitários? Outra vez: colocar entre o espectador e o objeto filmado algo que dê ao último uma aparência diferente. E, neste mundo, diferente, significa melhor, mais bonito, mais real.

Mas aí entram em cena os paradoxos.  Nada é tão fácil quanto chamar Scott de publicitário. De fato, o cineasta emprega diversos procedimentos típicos da propaganda, como vimos. No entanto, ao se deixar de lado as lentes do lugar comum, percebem-se algumas contradições bastante interessantes em Incontrolável:

1. Se uma parte do universo do cineasta gira em torno da não-mudança, da permanência, então não há como colocá-lo, evidentemente, no centro do cinema comercial/publicitário (falamos, acima, que a forma, em Scott, é mutável. Sim, mas ela muda para continuar igual: filtros fotográficos em Dias de trovão, no início da década de 90, manipulação no shutter, grão na imagem e câmera na mão, “realista”, em Incontrolável; início da década de 20: trata-se sempre de filmar a matéria com um baú de truques do momento à tiracolo). Afinal, tal instância é, quase sempre, calcada justamente na passagem de um ponto a outro. De zero a dez – a ascensão é sempre meteórica e radical. Basta lembrar, por exemplo, do comercial recente de uma marca de produto odontológico que combate a sensibilidade nos dentes: filmado à maneira das entrevistas jornalísticas, mostra “transeuntes”, interpelados por um repórter que lhes pede para participar de uma experiência, primeiro sofrendo ao tomar algum líquido gelado e, em seguida, ao aplicar a pasta de dentes anunciada, deslumbrando-se com suas propriedades de cura. Da dor à epifania: a câmera captura, “ao vivo” e sem pudor algum, a passagem de um estado a outro (a utopia alquimista do cinema: capturar a passagem de um estado a outro). Scott, já dissemos, também filma Incontrolável seguindo convenções atuais do “realismo”. O jornalismo televisivo desempenha, inclusive, papel de muleta narrativa. Entretanto e apesar de tudo, em nenhum momento o cineasta demonstra qualquer interesse em captar a passagem.  Só lhe interessa o trem – o objeto concreto, a máquina, e não suas implicações sociais ou morais –, o brinquedo que lhe possibilita fazer o filme de ação. Aliás, o contrário: o filme só existe graças à vontade do diretor em filmar o brinquedo. A forma, em Scott, um diretor ou muito esperto – surfa a onda do momento para conseguir maior aceitação, logo, mais dinheiro – ou intelectualmente muito preguiçoso – surfa a onda do momento porque todos estão surfando –, é apenas a embalagem pela qual é necessário passar para alcançar o maravilhoso trenzinho. Talvez por isso Incontrolável pareça, algumas vezes, um tanto feio. Quem sabe, e então chegamos finalmente a um grande paradoxo, seja pelo fato de não existir em Incontrolável a busca pela, aqui um termo de Daney, “imagem marcante” – algo que pornograficamente faz a publicidade.

2. Como não simpatizar com a “inocência” de Scott em posicionar sua câmera diante (ou melhor, dentro) do ferrorama e se divertir com isto? Ver um brinquedo gigante na tela, filmado de maneira “inocente”, não causa apenas simpatia. Há o prazer da empolgação infantil, barato e fugaz como um passeio no carrinho de bate-bate, mas, ainda sim, genuíno.  Existe uma força na presença daquela máquina veloz, saltitando de plano a plano na montagem pulsante empregada por Scott. Esta força, de alguma forma, anula o natural estado de desconfiança com que nos colocamos diante daquilo que se denomina “ação descerebrada”. Um sentimento verdadeiramente primitivo, anterior ao tédio do conhecimento daquelas imagens (tenho a idéia do que são as imagens de coisas explodindo, para que vê-las na tela, então, se já as vejo em minha cabeça?) desperta, não do cérebro, é claro, mas do estômago. Não é isso que deveriam proporcionar todos os filmes de ação? Então por que não o fazem os atuais? Porque são tecnicamente incompetentes? Porque não são inocentes o bastante? Scott é.

3. Incontrolável não se interessa pelo que estará lá adiante, ao final da rota, já que, é óbvio, nada há, mas pelo prazer (lúdico?) que a percorrer causa. Idéia velha, ao ponto de, atualmente, ter praticamente sido esquecida. Quantos longas-metragens hollywoodianos de ação trilham o caminho da singeleza nos últimos anos? A maioria deles não seriam apenas ferroramas de traçado óbvio enfeitados com mil e uma luzinhas a fim de parecerem deslizar não sobre trilhos, mas navegar nos complexos mares da contemporaneidade?  Quantos mostram sua face vulgar, feia e brutal diante de nós? (os carões enrugados dos Mercenários são um alento). Nem mesmo a burrice precisa ficar incógnita: o que é a seqüência em que policiais decidem tentar deter o monstro de ferro desgovernando usando atiradores de elite, para acertar um botão de cinco centímetros em um trem que vaga a mais de 200 quilômetros por hora, senão uma das seqüências mais idiotas possíveis? Antes a burrice plena, filmada com fé, do que a burrice disfarçada de auto-ironia e hipocrisia (Adrenalina e afins).

Scott surfa a onda do momento, usando a prancha do momento – mas o faz à sua maneira. Não que o cineasta seja um gênio. Longe disso. Ele é o que é.

Wellington Sari


 Janeiro de 2011