ALÉM DA VIDA
Clint Eastwood, Hereafter, EUA, 2010

Se a arte do cinema consiste em fixar um movimento – seja ele de que natureza for –, o grande movimento que Clint Eastwood se dedicou a fixar ao longo de sua obra é o dos afetos. Lutos, amizades, paixões ou reconhecimentos inevitáveis da necessidade de ceder frente ao outro: é este o campo que o cineasta trabalhou com maior persistência. E, neste sentido, seu último filme parece existir como uma afirmação de princípios. Minimalista e aparentemente sem arco dramático, pontuado por modulações emotivas e uma intensidade narrativa vacilante, Além da Vida nos instala em um terreno de empatia vital com os personagens, onde nada interessa além do que se passa em seu interior. O drama é reduzido ao essencial: aos obstáculos emocionais que moldam a trajetória dos pilares da ficção.

O roteiro dividido em três núcleos que se encontram no final não poderia, portanto, estar mais distante do termo “multi-plot”: em Além da Vida não há “plot”; não há trama. O que há é o maior dos paradoxos narrativos: a presença costumeira do destino, que confere traços trágicos às vidas dos personagens, em simultaneidade ao mundo de possibilidades infinitas e desconhecidas que se abre sem que ninguém espere. Dotados sempre de uma carga de responsabilidade esmagadora, os personagens de Eastwood, neste filme, encontram-se sugados para um além-da-cena.

Nunca os planos de personagens sozinhos em ambientes mal iluminados, recorrentes na obra eastwoodiana, tiveram uma aura tão amedrontadora quanto neste filme. E a sequência do quase-jantar no apartamento de Matt Damon, em que Bryce Dallas-Howard lhe pede uma “comunicação”, é o ápice disto: em todos os planos há um espaço vazio na extremidade do quadro anunciando uma presença desconhecida qualquer.

Cada um dos três personagens está isolado dentro de seu “núcleo”; eles não pertencem a suas cenas, foram sugados pelo negativo daquilo que vemos na imagem: a morte. E a morte assombra cada plano do filme não como ameaça, mas como uma presença aniquiladora que ofusca os personagens, ou como um vácuo ou buraco negro no horizonte que deve ser preenchido por algo.

É que a vida no cinema de Clint Eastwood é sempre soberana; quando a morte é uma escolha, ela revela-se uma afirmação da vida (Menina de Ouro ou Gran Torino, por exemplo). E, por isso, viver a dimensão da morte na vida é inaceitável, é o entrave que os personagens de Além da Vida devem superar, cada um a seu modo, cada um através de um processo próprio de conciliação.

Esta conciliação, aqui, não passa pelo prolongamento da vida após a morte, mas por uma compreensão alentadora do fenômeno. A parcela que o filme representa da ”vida após a vida” é ínfima, corresponde apenas à “entrada” neste outro mundo. Eastwood se recusa a assumir uma representação para além dessa visão inicial. Quando o personagem de Matt Damon realiza uma “comunicação”, tudo o que ele ouve ou vê nos é transmitido em terceira pessoa, pelo seu relato apenas. Não há espetáculo a ser oferecido à vista, o desconhecido permanece desconhecido. Nos resta somente a interação entre as pessoas aqui e daqui em diante.

Tatiana Monassa


 Janeiro de 2011