Se a arte do cinema consiste em fixar um movimento – seja ele
de que natureza for –, o grande movimento que Clint Eastwood
se
dedicou a fixar ao longo de sua obra é o dos afetos. Lutos,
amizades, paixões ou reconhecimentos inevitáveis
da
necessidade de ceder frente ao outro: é este o campo que o
cineasta trabalhou com maior persistência. E, neste sentido,
seu último filme parece existir como uma
afirmação
de princípios. Minimalista e aparentemente sem arco
dramático,
pontuado por modulações emotivas e uma
intensidade
narrativa vacilante, Além da Vida nos
instala em um
terreno de empatia vital com os personagens, onde nada interessa
além
do que se passa em seu interior. O drama é reduzido ao
essencial: aos obstáculos emocionais que moldam a
trajetória
dos pilares da ficção.
O roteiro dividido em três núcleos que se
encontram no
final não poderia, portanto, estar mais distante do termo
“multi-plot”: em Além da Vida
não há
“plot”; não há trama. O que
há é
o maior dos paradoxos narrativos: a presença costumeira do
destino, que confere traços trágicos
às vidas
dos personagens, em simultaneidade ao mundo de possibilidades
infinitas e desconhecidas que se abre sem que ninguém
espere.
Dotados sempre de uma carga de responsabilidade esmagadora, os
personagens de Eastwood, neste filme, encontram-se sugados para um
além-da-cena.
Nunca os planos de personagens sozinhos em ambientes mal iluminados,
recorrentes na obra eastwoodiana, tiveram uma aura tão
amedrontadora quanto neste filme. E a sequência do
quase-jantar
no apartamento de Matt Damon, em que Bryce Dallas-Howard lhe pede uma
“comunicação”, é o
ápice
disto: em todos os planos há um espaço vazio na
extremidade do quadro anunciando uma presença desconhecida
qualquer.
Cada um dos três personagens está isolado dentro
de seu
“núcleo”; eles não pertencem
a suas cenas,
foram sugados pelo negativo daquilo que vemos na imagem: a morte. E a
morte assombra cada plano do filme não como
ameaça, mas
como uma presença aniquiladora que ofusca os personagens, ou
como um vácuo ou buraco negro no horizonte que deve ser
preenchido por algo.
É que a vida no cinema de Clint Eastwood é sempre
soberana; quando a morte é uma escolha, ela revela-se uma
afirmação da vida (Menina de Ouro
ou Gran
Torino, por exemplo). E, por isso, viver a
dimensão da
morte na vida é inaceitável, é o
entrave que os
personagens de Além da Vida devem
superar, cada um a
seu modo, cada um através de um processo próprio
de
conciliação.
Esta conciliação, aqui, não passa pelo
prolongamento da vida após a morte, mas por uma
compreensão
alentadora do fenômeno. A parcela que o filme representa da
”vida após a vida” é
ínfima,
corresponde apenas à “entrada” neste
outro mundo.
Eastwood se recusa a assumir uma representação
para
além dessa visão inicial. Quando o personagem de
Matt
Damon realiza uma
“comunicação”, tudo o que
ele ouve ou vê nos é transmitido em terceira
pessoa,
pelo seu relato apenas. Não há
espetáculo a ser
oferecido à vista, o desconhecido permanece desconhecido.
Nos
resta somente a interação entre as pessoas aqui e
daqui
em diante.
Tatiana Monassa
Janeiro de 2011
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