Europa,
anos zero
Film
Socialisme
não é um ensaio audiovisual, é um
filme. Seu
realizador, Jean-Luc Godard, não é um pensador
teórico,
é um cineasta. Um cineasta que assumiu, para este filme, uma
atitude de artista obcecado, que se retira durante anos para criar,
retocar e aperfeiçoar sua obra. Michelangelo gastou dois
anos
e meio cizelando seu Davi. Godard precisou de quatro anos para dar
forma a seu
Film
Socialisme, prolongando questões
já colocadas desde os anos 1970-80, período
assombrado
pela constatação de uma “crise do
quadro”.
Naquela época, Godard afirmava: “não se
sabe mais
enquadrar”. Receando a leveza das novas aparelhagens, as
demasiadamente numerosas possibilidades oferecidas pelas
inovações
técnicas, ele apontava a necessidade de recuperar,
senão
os pesos, ao menos as dificuldades, as limitações
estimulantes dos antigos materiais, a delícia que sentia o
cinzel ao encontrar a resistência do mármore.
Agora
as imagens estão
partout, em todo e qualquer lugar. O que
é o
enquadramento para uma microcâmera acoplada a um aparelho
celular? A questão do quadro ainda se põe quando
se
tratam dos “novos regimes de imagem”? Godard, o
pintor,
responde que esta continua sendo a primeira e última
questão:
como enquadrar e quando começar e terminar um plano.
Na
primeira das três
partes do filme (três atos?), um navio atravessa o
Mediterrâneo
carregado de passageiros. Egito, Barcelona, Odessa, Nápoles,
destinos conhecidos. Godard, o endiabrado, bagunça tudo,
transforma o cruzeiro em inferno. Ele toca o terror, como Jerry Lewis
teria feito num filme de Frank Tashlin daqueles que ele defendia
ardorosamente nos Cahiers du Cinéma dos
anos 1950. Só
que, na falta de um corpo burlesco, sua arma secreta são os
próprios dispositivos de imagem e som. Defeitos,
saturações,
subexposições, estridências,
abafamentos, tem
sempre algo faltando ou sobrando. Armado com uma câmera de
celular, Godard brutaliza as cores e reinventa o fauvismo em
versão
digital. O ápice da tecnologia, paradoxalmente, incentiva
nele
uma nova busca pelo olhar selvagem e primitivo. Enquanto isso, no
som, palavras se proliferam. Perguntas sem resposta e frases sem
conclusão só deixam perdido quem quiser, pois
Godard,
já não é de hoje, trata as vozes menos
como
ferramentas de linguagem do que como massa sonora a ser moldada e
talhada.
Dois
impulsos convivem
na obra de Godard. O primeiro o incita a olhar as coisas de frente e
não problematizá-las, resultando em planos
arejados e
espontâneos. Uma árvore é uma
árvore, um
carro é um carro, uma mulher é uma mulher. O
segundo
impulso diz respeito ao Godard asfixiado pela cultura, pela arte e
pela(s) História(s), questionador do estatuto do
visível.
Uma árvore é uma escolha de verde, um carro
é um
produto do capitalismo industrial, uma mulher é uma
Vênus
inspirada em Botticelli. Se o primeiro impulso prevalece nas obras de
juventude, sobretudo no período 1959-65, em filmes dos anos
1980 como Passion e Je vous salue Marie
o segundo
impulso já predomina. Hoje,
é
mais difícil discernir, mas penso que Godard ainda se
digladia
com o fato de que tornou-se impossível para ele filmar o
rosto
de uma bela jovem com a mesma facilidade e simplicidade (com a mesma
inocência?) que encontrava em Acossado ou
Pierrot le fou.
Agora ele precisa de uma luz toda especial e até mesmo de
uma
câmera lenta para tão-somente mostrar um sorriso
feminino em primeiro plano, conforme faz na parte dois de Film
Socialisme.
Os
cenários desse segundo ato (uma casa, um posto de gasolina)
lembram Week-end e Duas ou três
coisas que eu sei dela.
Num dado momento, o moleque travesso pinta “uma paisagem de
outrora” sentado à escada e diz que “o
imbecil do
Renoir não viu muitas coisas bonitas”. Em meio
à
asfixia – e o plano que mostra a pintura do menino leva de
fato
ao extremo a hiper-saturação cromática
e
luminosa –, Godard ainda acha fôlego para afirmar
que a
arte não esgotou a beleza, da mesma forma que a linguagem
não
esgotou o mundo.
Rohmer
le grand Momo havia
dito em 1948: o espectador
moderno se habituou a interpretar o signo visual, mas, ao aprender a
compreender, desaprendeu a ver. Essa constatação,
que Godard vem ecoando nas
últimas
três décadas, ressurge parafraseada na fala de uma
personagem de Film Socialisme:
as pessoas aprendem a ler antes de aprender a ver. Acontece que o
essencial do cinema não
está na linguagem. Por isso Godard, em suas Histoire(s)
du cinéma,
remexeu o túmulo do cinema para ressuscitar a imagem como
tudo
aquilo que estava atrelado ao ver e não ao ler. Os planos
dos
grandes mestres do cinema clássico reapareciam como puro
traçado luminoso, libertos da cadeia significante. Em Film
Socialisme, ele remexe o túmulo das
civilizações
mediterrânicas para ressuscitar a História,
trazê-la
de volta ao presente por meio de sua simples presença
icônica
na tela.
Na
terceira parte,
somos atropelados por um dilúvio cinemático de
proporções bíblicas: fragmentos de
filmes
alheios, épicos, faroestes, trechos de cinejornais da
Segunda
Guerra, transmissões televisivas, arquivos. Sob os escombros
da demolição promovida por Godard, o mundo
agoniza e
renasce num só golpe. Apocalipse e gênese.
A
tendência
natural tem sido associar a lógica fragmentária
de Film
Socialisme à circulação de
imagens na
internet, às artes de instalação
contemporâneas
etc e tal. No entanto, é preciso lembrar do único
nome
que não é riscado do quadro negro em A
Chinesa:
Brecht. Não seria Film Socialisme uma
concepção
avançada do teatro épico brechtiano? Variedade e
amplitude do mundo narrado, autonomia das partes, grande mobilidade
dos eventos em espaço e tempo,
demarcação
precisa dos gestos.
Os
ciclos se repetem. O
tempo linear é uma invenção do
capitalismo que
visa a forjar a ilusão de que o passado não
volta. O
capitalismo tem medo do passado. Film Socialisme,
como não
poderia deixar de ser, vai contra esse medo e demonstra que o presente
nada mais é que uma
soma
dialética de passados.
Uma
cena incrível
é aquela em que Godard retorna à escadaria de
Odessa,
repete os movimentos de câmera de Eisenstein descendo os
degraus e os intercala com os planos do próprio O
Encouraçado Potemkin. Bergson, cujo Matéria
e
Memória é
um dos
livros de cabeceira de Godard, falava da “fotografia
já
tirada nas coisas”. Godard, nessa cena, mostra o cinema
já
filmado nas coisas. "O historiador não procura, ele
acha", é dito no filme. O mesmo vale para o cineasta.
Godard
é talvez
o único cineasta vivo capaz de fazer um filme sobre tudo ao
mesmo tempo agora, um filme-condensação que pense
dialeticamente os processos históricos. A
arquitetura foi para a Atenas de Péricles uma forma de
conservar na pedra a estatura de uma civilização,
o
traço de uma história; monumento e documento se
equivalem. O cinema, testemunho in loco das guerras e dos rumos
sinistros das democracias ocidentais, fornece a substância
inflamável de que Godard precisa para gravar na imagem a
desordem do mundo atual. Film Socialisme
é o
monumento-documento dos anos zero. Um afresco que, visto daqui a cem
anos, mostrará às pessoas tanto um gesto
artístico
singular quanto um vestígio arqueológico do nosso
tempo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Dezembro de 2010
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