FILM SOCIALISME
Jean-Luc Godard, França/Suíça, 2010

Europa, anos zero

Film Socialisme não é um ensaio audiovisual, é um filme. Seu realizador, Jean-Luc Godard, não é um pensador teórico, é um cineasta. Um cineasta que assumiu, para este filme, uma atitude de artista obcecado, que se retira durante anos para criar, retocar e aperfeiçoar sua obra. Michelangelo gastou dois anos e meio cizelando seu Davi. Godard precisou de quatro anos para dar forma a seu Film Socialisme, prolongando questões já colocadas desde os anos 1970-80, período assombrado pela constatação de uma “crise do quadro”. Naquela época, Godard afirmava: “não se sabe mais enquadrar”. Receando a leveza das novas aparelhagens, as demasiadamente numerosas possibilidades oferecidas pelas inovações técnicas, ele apontava a necessidade de recuperar, senão os pesos, ao menos as dificuldades, as limitações estimulantes dos antigos materiais, a delícia que sentia o cinzel ao encontrar a resistência do mármore.

Agora as imagens estão partout, em todo e qualquer lugar. O que é o enquadramento para uma microcâmera acoplada a um aparelho celular? A questão do quadro ainda se põe quando se tratam dos “novos regimes de imagem”? Godard, o pintor, responde que esta continua sendo a primeira e última questão: como enquadrar e quando começar e terminar um plano.

Na primeira das três partes do filme (três atos?), um navio atravessa o Mediterrâneo carregado de passageiros. Egito, Barcelona, Odessa, Nápoles, destinos conhecidos. Godard, o endiabrado, bagunça tudo, transforma o cruzeiro em inferno. Ele toca o terror, como Jerry Lewis teria feito num filme de Frank Tashlin daqueles que ele defendia ardorosamente nos Cahiers du Cinéma dos anos 1950. Só que, na falta de um corpo burlesco, sua arma secreta são os próprios dispositivos de imagem e som. Defeitos, saturações, subexposições, estridências, abafamentos, tem sempre algo faltando ou sobrando. Armado com uma câmera de celular, Godard brutaliza as cores e reinventa o fauvismo em versão digital. O ápice da tecnologia, paradoxalmente, incentiva nele uma nova busca pelo olhar selvagem e primitivo. Enquanto isso, no som, palavras se proliferam. Perguntas sem resposta e frases sem conclusão só deixam perdido quem quiser, pois Godard, já não é de hoje, trata as vozes menos como ferramentas de linguagem do que como massa sonora a ser moldada e talhada.

Dois impulsos convivem na obra de Godard. O primeiro o incita a olhar as coisas de frente e não problematizá-las, resultando em planos arejados e espontâneos. Uma árvore é uma árvore, um carro é um carro, uma mulher é uma mulher. O segundo impulso diz respeito ao Godard asfixiado pela cultura, pela arte e pela(s) História(s), questionador do estatuto do visível. Uma árvore é uma escolha de verde, um carro é um produto do capitalismo industrial, uma mulher é uma Vênus inspirada em Botticelli. Se o primeiro impulso prevalece nas obras de juventude, sobretudo no período 1959-65, em filmes dos anos 1980 como Passion e Je vous salue Marie o segundo impulso já predomina. Hoje, é mais difícil discernir, mas penso que Godard ainda se digladia com o fato de que tornou-se impossível para ele filmar o rosto de uma bela jovem com a mesma facilidade e simplicidade (com a mesma inocência?) que encontrava em Acossado ou Pierrot le fou. Agora ele precisa de uma luz toda especial e até mesmo de uma câmera lenta para tão-somente mostrar um sorriso feminino em primeiro plano, conforme faz na parte dois de Film Socialisme.

Os cenários desse segundo ato (uma casa, um posto de gasolina) lembram Week-end e Duas ou três coisas que eu sei dela. Num dado momento, o moleque travesso pinta “uma paisagem de outrora” sentado à escada e diz que “o imbecil do Renoir não viu muitas coisas bonitas”. Em meio à asfixia – e o plano que mostra a pintura do menino leva de fato ao extremo a hiper-saturação cromática e luminosa –, Godard ainda acha fôlego para afirmar que a arte não esgotou a beleza, da mesma forma que a linguagem não esgotou o mundo.

Rohmer le grand Momo havia dito em 1948: o espectador moderno se habituou a interpretar o signo visual, mas, ao aprender a compreender, desaprendeu a ver. Essa constatação, que Godard vem ecoando nas últimas três décadas, ressurge parafraseada na fala de uma personagem de Film Socialisme: as pessoas aprendem a ler antes de aprender a ver. Acontece que o essencial do cinema não está na linguagem. Por isso Godard, em suas Histoire(s) du cinéma, remexeu o túmulo do cinema para ressuscitar a imagem como tudo aquilo que estava atrelado ao ver e não ao ler. Os planos dos grandes mestres do cinema clássico reapareciam como puro traçado luminoso, libertos da cadeia significante. Em Film Socialisme, ele remexe o túmulo das civilizações mediterrânicas para ressuscitar a História, trazê-la de volta ao presente por meio de sua simples presença icônica na tela.

Na terceira parte, somos atropelados por um dilúvio cinemático de proporções bíblicas: fragmentos de filmes alheios, épicos, faroestes, trechos de cinejornais da Segunda Guerra, transmissões televisivas, arquivos. Sob os escombros da demolição promovida por Godard, o mundo agoniza e renasce num só golpe. Apocalipse e gênese.

A tendência natural tem sido associar a lógica fragmentária de Film Socialisme à circulação de imagens na internet, às artes de instalação contemporâneas etc e tal. No entanto, é preciso lembrar do único nome que não é riscado do quadro negro em A Chinesa: Brecht. Não seria Film Socialisme uma concepção avançada do teatro épico brechtiano? Variedade e amplitude do mundo narrado, autonomia das partes, grande mobilidade dos eventos em espaço e tempo, demarcação precisa dos gestos.

Os ciclos se repetem. O tempo linear é uma invenção do capitalismo que visa a forjar a ilusão de que o passado não volta. O capitalismo tem medo do passado. Film Socialisme, como não poderia deixar de ser, vai contra esse medo e demonstra que o presente nada mais é que uma soma dialética de passados.

Uma cena incrível é aquela em que Godard retorna à escadaria de Odessa, repete os movimentos de câmera de Eisenstein descendo os degraus e os intercala com os planos do próprio O Encouraçado Potemkin. Bergson, cujo Matéria e Memória é um dos livros de cabeceira de Godard, falava da “fotografia já tirada nas coisas”. Godard, nessa cena, mostra o cinema já filmado nas coisas. "O historiador não procura, ele acha", é dito no filme. O mesmo vale para o cineasta.

Godard é talvez o único cineasta vivo capaz de fazer um filme sobre tudo ao mesmo tempo agora, um filme-condensação que pense dialeticamente os processos históricos. A arquitetura foi para a Atenas de Péricles uma forma de conservar na pedra a estatura de uma civilização, o traço de uma história; monumento e documento se equivalem. O cinema, testemunho in loco das guerras e dos rumos sinistros das democracias ocidentais, fornece a substância inflamável de que Godard precisa para gravar na imagem a desordem do mundo atual. Film Socialisme é o monumento-documento dos anos zero. Um afresco que, visto daqui a cem anos, mostrará às pessoas tanto um gesto artístico singular quanto um vestígio arqueológico do nosso tempo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


Dezembro de 2010