O DISCURSO DO REI
Tom Hooper, The King's Speech, Inglaterra/Austrália/EUA, 2010

A formação de um imaginário sobre a realeza britânica, desde suas origens até os nossos tempos, passa indiscutivelmente pelos textos teatrais de William Shakespeare. Com seu ciclo de peças históricas, o chamado “bardo” descreveu figuras, certamente idealizadas e não de todo historicamente fiéis, que retrataram monarcas de caráteres diversos. Temos desde reis heroicos, como Henrique V, até reis canalhas e assassinos, sendo Ricardo III o mais memorável dentre estes. Desde suas origens, o cinema apropriou-se desta obra e tratou de perpetuar tais figuras que, independentemente de seu caráter e valor histórico, via de regra se expressavam de forma eloquente pela rica poesia shakespeariana.

Cabe hoje o seguinte questionamento: tendo em vista uma visão contemporânea dos fatos, ainda seria válida uma abordagem da realeza como figuras gloriosas e superiores? Algumas tentativas de revisão da monarquia britânica caíram na armadilha de, apesar da busca de uma maior precisão histórica e humanização de seus personagens, reproduzir um tratamento cinematográfico linear e pomposo que não os posiciona além da nulidade e do tédio, haja visto o dístico sobre Elizabeth I da dupla Shekar Kapur/Cate Blanchett ou o mais recente A Jovem Rainha Vitória. O único caso memorável no gênero parece ter sido Stephen Frears e seu A Rainha, pois o filme tinha a seu favor a contemporaneidade e o fato da protagonista Elizabeth II não ter sobre si o peso de um reinado heroico, muito pelo contrário, sendo vista como uma figura que carrega em si todas as contradições da obsolência da monarquia e suas tradições anacrônicas.

É carregando a herança negativa dessas tradições que surge O Discurso do Rei, filme que surpreendentemente consegue reverter expectativas das limitações do subgênero “filme-inglês-de-época-sobre-reis”. Em que pesem sobre o fato uma série de fatores, e um deles não é a simples humanização da figura real. Isso é feito há muito tempo, como já foi dito. No entanto, o retrato do rei George VI – Bertie para os “íntimos” – conforme a inteligente composição de Colin Firth, vai além de um mero príncipe enfraquecido por sua gagueira. Temos um homem que espelha todas as contradições de uma nobreza bolorenta perante o redemoinho histórico do século XX. Em tempos de ascensão do fascismo e da iminência de uma grande guerra, Bertie é o melhor símbolo para toda uma monarquia que gagueja. Partindo de seu temperamento vacilante, o filme retrata sua transformação em George VI como a ponte entre uma monarquia heroica e de pulso forte (enterrada com seu pai, George V) e o total oposto retratado pelo abandono das tradições e o abraço a um mundo secular feito por seu irmão Eduardo VIII, que abdica do trono pelo casamento com uma americana plebeia e divorciada. Bertie, à medida que, levado pelos fatos, vai assumindo seu papel de monarca, passa a encarnar conscientemente uma imagem concreta do rei para os novos tempos, ciente da ausência de um poder de fato, mas ainda portador de uma liderança simbólica. É sobre a construção dessa imagem que trata O Discurso do Rei.

O filme deixa claro que essa transfiguração de Bertie em George VI passa por um contato/vivência com um mundo real, no caso sintetizado pela figura do fonoaudiólogo Lionel Logue (Geoffrey Rush). Dentro desse embate no qual as características antagônicas nem sempre partem de onde a princípio se esperaria – a altivez de Logue contrasta com a vacilante arrogância de Bertie – vemos o crescimento de dois personagens que não se concretizam como imagens de simples figuras humanas (ou humanizadas), como uma leitura simplista pode sugerir. Acabamos por ver aí a síntese de todo um momento histórico, onde o choque com uma realidade – fascismo, guerra – vai fazer ruir as tradições românticas do passado, recriando todo um mundo, desde então mais palpável e infinitamente mais sombrio.

Voltando ao teatro de Shakespeare, vamos lembrar que toda a concretização da imponência e liderança real passa pela fala. Basta lembrar apenas do discurso célebre de Henrique V que antecede sua vitória sobre os franceses. Não é de se estranhar, portanto, que, O Discurso do Rei foque a metamorfose de Bertie em monarca justamente através da fala. Bertie pode ser comparado ao jovem Henrique ainda príncipe, e Logue ao seu Falstaff, sem o qual não existiria o Henrique-rei. Mas a época onde se passa o filme de Tom Hooper não traz mais espaço para o rei heroico, que vai ao combate com suas tropas. É necessário fazer do rei uma inspiração para a resistência. Mera imagem simbólica, num tempo onde essa imagem já era construída por meios de comunicação de massa, no caso o rádio. A imagem pública do rei era justamente sua voz, daí mais que em qualquer época a importância de George se colocar como símbolo através de um discurso imponente. E há que se lembrar que os fatos históricos que sucedem a conclusão da narrativa do filme farão de George VI uma figura ainda mais opaca, pois seria Winston Churchill, figura tangencial em O Discurso do Rei, a grande voz de liderança dos britânicos durante a 2ª. Guerra. A história mostrará também que Bertie-George e seu discurso teriam sido o último suspiro de uma imagem real idealizada. Os fatos e a ascensão de novas mídias, daí para frente, como a televisão, a internet e o que mais estiver por vir, só fariam intensificar a dessacralização da monarquia, como visto no já citado A Rainha, focado em Elizabeth II, a filha de Bertie que o sucedeu no trono. Isso faz da revisão do filme de Frears um belo complemento a O Discurso do Rei.

Ainda que possam pesar uma pouca contextualização da história após os fatos que sucedem a ação e algumas soluções óbvias no roteiro de David Seidler, O Discurso do Rei se transfigura num filme vigoroso e envolvente pelo fato de Tom Hooper ter acreditado nele como muito mais que um aparente drama histórico, história de superação ou filme inspirador. O Discurso do Rei consegue ser um pouco de tudo isso e muito mais, se pensarmos que a direção de Hooper despe o filme de uma levada solene na linha BBC. Hooper sabe ser teatral quando precisa, deixando a câmera captar atores e ambientes com propriedade e leveza, lembrando bastante a mise-en-scène imposta por Peter Yates no excelente e hoje pouco lembrado O Fiel Camareiro (1984). Sabe também criar, com muita competência, planos mais abertos e trabalhar lentes para realçar a ação, sem desprezar a construção de momentos de pura delicadeza, como a cena em que Bertie abraça as filhas após se tornar rei. Seu histórico de maior volume de trabalho em TV não se impõe como recriação da linguagem televisiva, mas sim como um domínio de todos os meios e a intimidade de um diretor que sabe muito bem filmar diálogos sem colocar as imagens à sua subserviência, envolvendo o conjunto numa edição musicalmente precisa, como havia exposto em especial em Independence, episódio da premiada minissérie John Adams, por ele dirigida em 2008.

A consonância entre Hooper e seu excepcional elenco é também essencial para a força de O Discurso do Rei. Além da sutileza de Colin Firth, da potência virtuosa de Geoffrey Rush, temos uma Helena Bonham Carter encarnando uma leveza discreta que não tem espaço em suas colaborações com o marido Tim Burton. O uso dos meios de produção – direção de arte, figurinos, etc. – por Hooper é feito com sabedoria cada vez mais rara em filmes de época, construindo uma ambientação que instala a ação sem ofuscá-la. A mesma utilização inteligente se faz com a música de Alexandre Desplat, talvez o melhor “trilheiro” do cinema no momento. Prêmios à parte, temos com esse filme o abrir dos olhos para Tom Hooper como um talento a ser acompanhado. Provavelmente não como um autor a criar uma obra pessoal, mas como um artesão não submisso ou acomodado, figura cara à história do cinema mas cada vez mais difícil de ser encontrada no panorama da produção americana atual. A resposta às expectativas só o tempo trará.

Gilberto Silva Jr.


 Fevereiro de 2011