A formação de um
imaginário sobre a realeza britânica, desde suas origens até os nossos tempos,
passa indiscutivelmente pelos textos teatrais de William Shakespeare. Com seu
ciclo de peças históricas, o chamado “bardo” descreveu figuras, certamente
idealizadas e não de todo historicamente fiéis, que retrataram monarcas de
caráteres diversos. Temos desde reis heroicos, como Henrique V, até reis
canalhas e assassinos, sendo Ricardo III o mais memorável dentre estes. Desde
suas origens, o cinema apropriou-se desta obra e tratou de perpetuar tais
figuras que, independentemente de seu caráter e valor histórico, via de regra
se expressavam de forma eloquente pela rica poesia shakespeariana.
Cabe hoje o seguinte
questionamento: tendo em vista uma visão contemporânea dos fatos, ainda seria
válida uma abordagem da realeza como figuras gloriosas e superiores? Algumas
tentativas de revisão da monarquia britânica caíram na armadilha de, apesar da
busca de uma maior precisão histórica e humanização de seus personagens,
reproduzir um tratamento cinematográfico linear e pomposo que não os posiciona
além da nulidade e do tédio, haja visto o dístico sobre Elizabeth I da dupla Shekar
Kapur/Cate Blanchett ou o mais recente A Jovem Rainha Vitória. O único
caso memorável no gênero parece ter sido Stephen Frears e seu A Rainha, pois
o filme tinha a seu favor a contemporaneidade e o fato da protagonista
Elizabeth II não ter sobre si o peso de um reinado heroico, muito pelo
contrário, sendo vista como uma figura que carrega em si todas as contradições
da obsolência da monarquia e suas tradições anacrônicas.
É carregando a herança
negativa dessas tradições que surge O Discurso do Rei, filme que
surpreendentemente consegue reverter expectativas das limitações do subgênero
“filme-inglês-de-época-sobre-reis”. Em que pesem sobre o fato uma série de
fatores, e um deles não é a simples humanização da figura real. Isso é feito há
muito tempo, como já foi dito. No entanto, o retrato do rei George VI –
Bertie para os “íntimos” – conforme a inteligente composição de Colin
Firth, vai além de um mero príncipe enfraquecido por sua gagueira. Temos um
homem que espelha todas as contradições de uma nobreza bolorenta perante o
redemoinho histórico do século XX. Em tempos de ascensão do fascismo e da
iminência de uma grande guerra, Bertie é o melhor símbolo para toda uma
monarquia que gagueja. Partindo de seu temperamento vacilante, o filme retrata
sua transformação em George VI como a ponte entre uma monarquia heroica e de
pulso forte (enterrada com seu pai, George V) e o total oposto retratado pelo
abandono das tradições e o abraço a um mundo secular feito por seu irmão
Eduardo VIII, que abdica do trono pelo casamento com uma americana plebeia e
divorciada. Bertie, à medida que, levado pelos fatos, vai assumindo seu papel
de monarca, passa a encarnar conscientemente uma imagem concreta do rei para os
novos tempos, ciente da ausência de um poder de fato, mas ainda portador de uma
liderança simbólica. É sobre a construção dessa imagem que trata O Discurso
do Rei.
O filme deixa claro que
essa transfiguração de Bertie em George VI passa por um contato/vivência com um
mundo real, no caso sintetizado pela figura do fonoaudiólogo Lionel Logue
(Geoffrey Rush). Dentro desse embate no qual as características antagônicas nem
sempre partem de onde a princípio se esperaria – a altivez de Logue
contrasta com a vacilante arrogância de Bertie – vemos o crescimento de dois
personagens que não se concretizam como imagens de simples figuras humanas (ou
humanizadas), como uma leitura simplista pode sugerir. Acabamos por ver aí a
síntese de todo um momento histórico, onde o choque com uma realidade –
fascismo, guerra – vai fazer ruir as tradições românticas do passado,
recriando todo um mundo, desde então mais palpável e infinitamente mais
sombrio.
Voltando ao teatro de
Shakespeare, vamos lembrar que toda a concretização da imponência e liderança
real passa pela fala. Basta lembrar apenas do discurso célebre de Henrique V
que antecede sua vitória sobre os franceses. Não é de se estranhar, portanto,
que, O Discurso do Rei foque a metamorfose de Bertie em monarca
justamente através da fala. Bertie pode ser comparado ao jovem Henrique ainda
príncipe, e Logue ao seu Falstaff, sem o qual não existiria o Henrique-rei. Mas
a época onde se passa o filme de Tom Hooper não traz mais espaço para o rei
heroico, que vai ao combate com suas tropas. É necessário fazer do rei uma
inspiração para a resistência. Mera imagem simbólica, num tempo onde essa
imagem já era construída por meios de comunicação de massa, no caso o rádio. A
imagem pública do rei era justamente sua voz, daí mais que em qualquer época a
importância de George se colocar como símbolo através de um discurso imponente.
E há que se lembrar que os fatos históricos que sucedem a conclusão da
narrativa do filme farão de George VI uma figura ainda mais opaca, pois seria
Winston Churchill, figura tangencial em O Discurso do Rei, a grande voz
de liderança dos britânicos durante a 2ª. Guerra. A história mostrará também
que Bertie-George e seu discurso teriam sido o último suspiro de uma imagem
real idealizada. Os fatos e a ascensão de novas mídias, daí para frente, como a
televisão, a internet e o que mais estiver por vir, só fariam intensificar a
dessacralização da monarquia, como visto no já citado A Rainha, focado
em Elizabeth II, a filha de Bertie que o sucedeu no trono. Isso faz da revisão
do filme de Frears um belo complemento a O Discurso do Rei.
Ainda que possam pesar
uma pouca contextualização da história após os fatos que sucedem a ação e
algumas soluções óbvias no roteiro de David Seidler, O Discurso do Rei se
transfigura num filme vigoroso e envolvente pelo fato de Tom Hooper ter
acreditado nele como muito mais que um aparente drama histórico, história de
superação ou filme inspirador. O Discurso do Rei consegue ser um pouco
de tudo isso e muito mais, se pensarmos que a direção de Hooper despe o filme
de uma levada solene na linha BBC. Hooper sabe ser teatral quando precisa,
deixando a câmera captar atores e ambientes com propriedade e leveza, lembrando
bastante a mise-en-scène imposta por Peter Yates no excelente e hoje
pouco lembrado O Fiel Camareiro (1984). Sabe também criar, com muita
competência, planos mais abertos e trabalhar lentes para realçar a ação, sem
desprezar a construção de momentos de pura delicadeza, como a cena em que
Bertie abraça as filhas após se tornar rei. Seu histórico de maior volume de
trabalho em TV não se impõe como recriação da linguagem televisiva, mas sim
como um domínio de todos os meios e a intimidade de um diretor que sabe muito
bem filmar diálogos sem colocar as imagens à sua subserviência, envolvendo o
conjunto numa edição musicalmente precisa, como havia exposto em especial em Independence,
episódio da premiada minissérie John Adams, por ele dirigida em 2008.
A consonância entre
Hooper e seu excepcional elenco é também essencial para a força de O
Discurso do Rei. Além da sutileza de Colin Firth, da potência virtuosa de
Geoffrey Rush, temos uma Helena Bonham Carter encarnando uma leveza discreta
que não tem espaço em suas colaborações com o marido Tim Burton. O uso dos
meios de produção – direção de arte, figurinos, etc. – por Hooper é
feito com sabedoria cada vez mais rara em filmes de época, construindo uma
ambientação que instala a ação sem ofuscá-la. A mesma utilização inteligente se
faz com a música de Alexandre Desplat, talvez o melhor “trilheiro” do cinema no
momento. Prêmios à parte, temos com esse filme o abrir dos olhos para Tom
Hooper como um talento a ser acompanhado. Provavelmente não como um autor a
criar uma obra pessoal, mas como um artesão não submisso ou acomodado, figura
cara à história do cinema mas cada vez mais difícil de ser encontrada no
panorama da produção americana atual. A resposta às expectativas só o tempo
trará.
Gilberto Silva Jr.
Fevereiro
de 2011
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