Ser adolescente é estar em
constante embate com o mundo. Seja com o mundo lá fora ou com o mundo
interior. Pais e autoridades costumam, pela ótica dos jovens, atuar como a
faísca que inflama a chama da rebeldia – que pode significar uma simples
negação: não quero ser como você. Dito de outra maneira: adolescência é
quando o modelo é o vocalista do NX Zero, e não o pai. O que pensar de Desenrola,
que nos apresenta Pedro Bial, este grande irmão, figura conciliadora por
excelência, interpretando um professor? E que, além disso, termina com um close sorridente de Cláudia Ohana, mãe de Priscila (Olivia Torres), a protagonista de
dezesseis anos? O novo longa-metragem de Rosane Svartman, ao dar a última
palavra, ou, a última imagem, a um adulto, seria menos adolescente?
Não há como afirmar que Desenrola seja menos adolescente que Clube dos cinco, por exemplo, cuja música
tema, Don´t you forget about me, é usada por Rosane na trilha sonora.
Mesmo que a diretora proponha uma conexão entre os dois filmes e, assim,
possibilite comparação, é impossível olhar para um e outro e dizer, de maneira
precisa, que o segundo é mais adolescente que o primeiro, por conter em sua
gênese determinadas características.
Por outro lado, há, sim,
como pensar em modos politicamente mais interessantes de se fazer um filme
adolescente (e estéticos, claro, como veremos). Dar ao adulto a palavra final
indica um posicionamento bastante claro: o de manter tudo sob controle. O
último plano do longa-metragem representa a restauração da ordem pelo caminho
da compreensão. Eu, adulto, entendo você, jovem, mas, agora chega, volte ao seu
lugar. Imaginemos, já que Desenrola nos permite, o último plano de Clube
dos cinco, composto não por John Bender, cabeça erguida, punho em riste, em
um desenho perfeito do triunfo (Clube dos cinco: a redação, em noventa
minutos, da vitória suprema do adolescente sobre o adulto), mas pela mãe de
Molly Ringwald, sorriso armado, contente por todo o aprendizado pelo qual a
filha acabou de passar. Nada menos do que uma traição política.
Embate e compreensão.
Voltemos a estes dois pontos. Todos os personagens adultos em Desenrola são retratados de maneira bastante inofensiva. O que significa ausência total
de embate. Mais do que isso: é a evidência de que o longa-metragem não é uma
comédia jovem, e sim, uma comédia com jovens. Temos aqui um filme cujo ponto de
vista não é o do adolescente, mas o do adulto sobre o adolescente. A
presença constante de objetos da memória afetiva da mãe - descobertos em um baú
por Priscila, logo depois que a personagem de Claudia viaja, já na primeira
sequência - seja no corpo dos atores (o óculos em Priscila, a touca em Caco),
no filme em si (a música dos Simple Minds na trilha sonora) ou na
articulação da dramaturgia (o primeiro contato de Priscila com Rafa, seu amor
platônico, só acontece graças ao walkman da mãe) apenas reforça a idéia:
como um espectro, as lembranças da progenitora pairam sob a filha. O que
parecem peripécias pelo inédito – a primeira transa, a primeira viagem – nada
mais são do que reprises das aventuras já vividas pela mãe. O bilhete
deixado por Priscila, ao final do filme, diz “Não fique braba. Você já teve
dezesseis anos”. Claudia Ohana sorri, coloca os fones de ouvido e pronto: mãe e
filha estabelecem a mais perfeita conexão. Rosane, ao contrário de Hughes,
filma no passado, o que sugere a noção irritante de que a adolescência não é
nada além do prequel da fase adulta, ao invés de um universo próprio e
independente.
Desenrola ganha
força justamente nos poucos momentos em que vai até este universo e o capta à
sua altura, ao invés de vê-lo de cima, com o olhar perdido do saudosismo. As
três cenas em que Priscila e Tize (Juliana Paiva) conversam às sós, filmadas
todas de acordo com um mesmo esquema formal, são exemplares. No chão do
corredor do colégio, na barraca de acampamento e no chão do apartamento de
Priscila, a câmera, posicionada quase à maneira de Ozu – ou, para ficar na
chave do filme: à maneira de Hughes na célebre sequência da conversa em
semicírculo de Clube dos cinco – concentrando as duas atrizes no centro,
não nos permitindo ver nada além destas garotas, tem a capacidade de revelar um mundo novo, mesmo que por meio do conhecido, do banal. O menor dos gestos é
capaz de proporcionar a maior das descobertas. Priscila e Tize com a boca
cheia de brigadeiro comido na colher, falando de um assunto relativamente
sério: ser adolescente é isso. No momento em que não há intermediação,
em que temos acesso direto àqueles rostos, com suas adoráveis imperfeições – as
mil e uma sardinhas de Olivia Torres, os dentes da frente tortos de Lucas
Salles, o nariz achatado de Vitor Thiré –, podemos, sim, ter um vislumbre do
que é esta fase da vida hoje. No entanto, quase sempre existe algo entre
nós e as pessoas filmadas. Às vezes literalmente, como na cena em que Tize
reconcilia-se com o namorado, enquadrada quase toda através de um vidro
colorido. Em outras, a intermediação é feita pelas equivocadas escolhas
estéticas.
Adolescência, afinal, é
Olivia Torres, e não Kayky Brito. Este último é habitante do reino da
propaganda, a mesma que, logo antes dos trailers, exibe jovens sarados e
dourados gingando na praia, nos provando que, caso compremos o guaraná
anunciado, teremos passe livre a tal paraíso. Quando Desenrola trilha
este caminho, e, com o megafone da publicidade, anuncia a passagem para o mundo
bacana das cores saturadas, das intervenções gráficas, do rockinho faceiro, do
naturalismo selvagem da câmera à mão, “documental”, o que temos não é nem mais
a visão de um adulto sobre adolescentes, mas a visão de um adulto usando as
lentes de contato da tendência.
Wellington Sari
Janeiro
de 2011
|