CÓPIA FIEL
Abbas Kiarostami, Copie conforme, França/Itália/Irã, 2010

Na seqüência de abertura, um palestrante fala de seu livro recém traduzido para o italiano (o filme se passa na Toscana). Na platéia, uma mulher (Binoche) cochicha com seu filho pré-adolescente, aparentemente injuriado. A mulher deixa um bilhete para o escritor e sai. No dia seguinte eles se encontram e, com Binoche ao volante, tomam a estrada em direção a uma pequena cidade onde diariamente ocorrem dezenas de casamentos (por razões de tradição e superstição, muitas pessoas acreditam que a cidade favorece uma união feliz, e a escolhem para sediar seus matrimônios).

Ele, um inglês, e ela, uma francesa, vão conversando ao longo do caminho. O livro escrito por ele defende a tese de que a cópia de uma obra de arte pode ser tão inspiradora quanto a obra original. Assim, a própria noção de original seria supérflua – a obra já não é, em si, a cópia de alguma coisa, de alguém, de algum aspecto do mundo, ou até mesmo a cópia de uma idéia cujo original só existe no espírito do artista? Isso é discutido por eles no carro, não necessariamente nos mesmos termos aqui utilizados (a discussão deve ser guardada pelo espectador, mas não deve orientar sua fruição).

Os principais enquadramentos, temas, motivos composicionais e figuras de estilo de Kiarostami aos poucos vão aparecendo, como se naturalmente encontrassem seu lugar na paisagem. Na Itália e não no Irã, através dos ciprestes e não das oliveiras, o fato é que Kiarostami acha seus planos, aqueles mesmos (ou não tão mesmos assim) que filmou em casa. A estrada prolonga caminhos já antes visitados; as paredes de pedra de Arezzo se tornam uma continuação dos cenários de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? e O Vento Nos Levará.

A obra de Kiarostami, até aqui, havia percorrido o trajeto de substituição da mise en scène por um dispositivo de narração “automático”. Tratava-se então de fazer surgir um mundo a partir de um conceito, invertendo a posição clássica do cinema de autor, que consistia em criar uma forma a partir do mundo. Dez (2002) e Cinco (2004) foram os pontos limítrofes desse trajeto. Shirin (2009) foi sua reinvenção e, em igual medida, seu esgotamento. Cópia Fiel, por sua vez, é um constante jogo de tensão e distensão entre dispositivo e mise en scène. Reside aí o grande assunto do filme: as façanhas de um cineasta do dispositivo se aventurando em puros desafios de dramaturgia.

Cópia Fiel é um divertimento sério, um conjunto de “jogos para atores e não-atores”. A cena chave é aquela no café: o escritor se afasta para falar ao celular e uma senhora, pensando que ele e Binoche são casados, começa a dar a ela conselhos sobre a vida a dois. A cena torce o filme sobre si mesmo. Depois que o escritor volta à mesa, ele e Binoche entram numa discussão interminável. Eles já não são pessoas que se conheceram há poucas horas: são casados, e infelizes no casamento, há quinze anos. Uma nova ficção se cria dentro daquela outra que nos havia sido apresentada. Ou uma ficção que já existia, porém em estado de latência, agora vem a primeiro plano. As fronteiras entre ator, personagem e personagem dentro do personagem ficam indiscerníveis. O lado de dentro e o lado de fora da representação se confundem e se comutam como numa fita de Moebius. Os signos de tal transformação já se insinuavam anteriormente, mas de modo discreto. A partir dessa cena no café, Kiarostami abre o jogo, literalmente.

O plano mais importante do filme é aquele em que o escritor observa Binoche conversando com pessoas desconhecidas que ela abordou ao acaso. Ela faz perguntas sobre a escultura que adorna a fonte na praça principal da cidade. O plano em questão mostra o escritor ao lado de um espelho e de um retrovisor de uma moto (Kiarostami adora retrovisores) e Binoche, que saiu de quadro, aparecendo refletida nesses espelhos. Atrás do escritor, uma parede: não há profundidade na cena; os únicos elementos que abrem ou fendem o plano são os pequenos espelhos. O espaço visual dessa cena reúne e ao mesmo tempo separa campo e contracampo, homem e mulher, superfície e profundidade. O quadro-dispositivo assim concebido é quase tão complexo quanto As Meninas de Velázquez, mise en abyme do ponto de vista do artista e do espectador sobre a cena que ele observa.

Ora, esse efeito-tableau sempre existiu na obra de Kiarostami. Basta lembrar daquela cena quase ao final de E a Vida Continua, quando uma abertura no muro de uma casa atrai nosso olhar como se esse pequeno quadro dentro do quadro estivesse dotado de uma enorme força de aspiração – impossível deixar de desejar o que existe atrás da brecha no muro (uma paisagem natural, ao que tudo indica – ou se trata de um trompe l'oeil?). Num determinado momento, a câmera aquiesce à pulsão escópica e realiza um zoom que mergulha na abertura da parede: o olhar se deixa sugar pela natureza num movimento ótico não isento de erotismo. Em Através das Oliveiras, e mais tarde em O Vento Nos Levará, o plano que remete concretamente à presença da câmera e ao olho do cineasta (nosso olho por procuração) já está mais próximo desse jogo de espelhos de Cópia Fiel: um quadro rigorosamente composto no interior do qual se acha um pequeno espelho que inscreve na imagem o olhar que, a partir de algum ponto cego, organiza o espaço representado. Mas aqui há um dado novo que não se deve menosprezar: estamos na Toscana, nascedouro da perspectiva artificialis e, portanto, da representação de um “espaço sistemático” ordenado em torno de um centro geométrico definido. Kiarostami, consciente dos significados da invenção de Alberti e Brunelleschi, monta uma espécie de armadilha para o olho acostumado à perspectiva de ponto de fuga central: o que inevitavelmente nos cativa no plano é o espelho, que não traz senão o reflexo do que se dá no fora-de-campo. Em outras palavras, o campo absorve o fora-de-campo esvaziando-o. O efeito do enquadramento sobrepuja o da cena. Kiarostami subverte a fórmula baziniana (o quadro é centrípeto, a tela é centrífuga) e fecha o plano sobre o espaço de sua própria composição (torna a tela centrípeta), obrigando o olhar do espectador a se concentrar no interior do espaço plástico da imagem, a ver menos uma cena ficcional do que uma atividade do quadro. Ele deixa a mise en scène em suspenso para jogar com um certo número de hipóteses plásticas e conceituais contidas na estrutura do quadro.

É esse o lugar perigoso em que Cópia Fiel se instala, flertando com a possibilidade iminente de se esgotar numa interrogação sobre os próprios mecanismos de funcionamento de seus dispositivos. Apesar dessa tendência auto-reflexiva um pouco sufocante, não é um filme que se prende num interesse meramente teórico. As situações criadas com os atores são desiguais, nem sempre mantêm a mesma força, mas nunca deixam de ser instigantes e de se arriscar em alguma zona desconhecida. Kiarostami dá motivos o bastante para embarcarmos em sua viagem. 

Luiz Carlos Oliveira Jr.


 Março de 2011