Na
seqüência
de abertura, um palestrante fala de seu livro recém
traduzido
para o italiano (o filme se passa na Toscana). Na platéia,
uma
mulher (Binoche) cochicha com seu filho pré-adolescente,
aparentemente injuriado. A mulher deixa um bilhete para o escritor e
sai. No dia seguinte eles se encontram e, com Binoche ao volante,
tomam a estrada em direção a uma pequena cidade
onde
diariamente ocorrem dezenas de casamentos (por razões de
tradição e superstição,
muitas pessoas
acreditam que a cidade favorece uma união feliz, e a
escolhem
para sediar seus matrimônios).
Ele,
um inglês, e
ela, uma francesa, vão conversando ao longo do caminho. O
livro escrito por ele defende a tese de que a cópia de uma
obra de arte pode ser tão inspiradora quanto a obra
original.
Assim, a própria noção de original
seria
supérflua – a obra já não
é, em si,
a cópia de alguma coisa, de alguém, de algum
aspecto do
mundo, ou até mesmo a cópia de uma
idéia cujo
original só existe no espírito do artista? Isso
é
discutido por eles no carro, não necessariamente nos mesmos
termos aqui utilizados (a discussão deve ser guardada pelo
espectador, mas não deve orientar sua
fruição).
Os
principais
enquadramentos, temas, motivos composicionais e figuras de estilo de
Kiarostami aos poucos vão aparecendo, como se naturalmente
encontrassem seu lugar na paisagem. Na Itália e
não no
Irã, através dos ciprestes e não das
oliveiras, o fato é que
Kiarostami acha
seus planos, aqueles mesmos (ou não tão
mesmos
assim) que filmou em casa. A estrada prolonga caminhos já
antes visitados; as paredes de pedra de Arezzo se tornam uma
continuação dos cenários de Onde
Fica a Casa
do Meu Amigo? e O Vento Nos Levará.
A
obra de Kiarostami,
até aqui, havia percorrido o trajeto de
substituição
da mise en scène por
um dispositivo de narração
“automático”.
Tratava-se então de fazer surgir um mundo a partir de um
conceito, invertendo a posição
clássica do
cinema de autor,
que consistia em criar uma forma a partir do mundo. Dez (2002) e Cinco (2004)
foram os pontos limítrofes desse trajeto. Shirin (2009) foi sua reinvenção e, em igual medida, seu
esgotamento. Cópia Fiel,
por sua vez, é
um constante jogo de tensão e distensão entre
dispositivo e mise en scène. Reside
aí o grande assunto do filme: as façanhas de um cineasta do
dispositivo se aventurando em puros desafios de dramaturgia.
Cópia
Fiel
é um divertimento sério, um conjunto de
“jogos
para atores e não-atores”. A cena chave
é aquela
no café: o escritor se afasta para falar ao celular e uma
senhora, pensando que ele e Binoche são casados,
começa
a dar a ela conselhos sobre a vida a dois. A cena torce o filme sobre
si mesmo. Depois que o escritor volta à mesa, ele e Binoche
entram numa discussão interminável. Eles
já não
são pessoas que se conheceram há poucas horas:
são
casados, e infelizes no casamento, há quinze anos. Uma nova
ficção se cria dentro daquela outra que nos havia
sido
apresentada. Ou uma ficção que já
existia, porém
em estado de latência, agora vem a primeiro plano. As
fronteiras entre ator, personagem e personagem dentro do personagem
ficam indiscerníveis. O lado de dentro e o lado de fora da
representação se confundem e se comutam como numa
fita
de Moebius. Os signos de tal transformação
já se
insinuavam anteriormente, mas de modo discreto. A partir dessa cena
no café, Kiarostami abre o jogo, literalmente.
O
plano mais importante
do filme é aquele em que o escritor observa Binoche
conversando com pessoas desconhecidas que ela abordou ao acaso. Ela
faz perguntas sobre a escultura que adorna a fonte na praça
principal da cidade. O plano em questão mostra o escritor ao
lado de um espelho e de um retrovisor de uma moto (Kiarostami adora
retrovisores) e Binoche, que saiu de quadro, aparecendo refletida
nesses espelhos. Atrás do escritor, uma parede:
não há
profundidade na cena; os únicos elementos que abrem ou
fendem
o plano são os pequenos espelhos. O espaço visual
dessa
cena reúne e ao mesmo tempo separa campo e contracampo,
homem
e mulher, superfície e profundidade. O quadro-dispositivo
assim concebido é quase tão complexo quanto As
Meninas de Velázquez, mise en abyme do
ponto de vista do artista e do espectador sobre a cena que ele
observa.
Ora,
esse
efeito-tableau sempre
existiu
na obra de Kiarostami. Basta lembrar daquela cena quase ao final de E
a Vida Continua,
quando uma
abertura no muro de uma casa atrai nosso olhar como se esse pequeno
quadro dentro do quadro estivesse dotado de uma enorme força
de aspiração – impossível
deixar de desejar o que existe
atrás da brecha no muro (uma paisagem natural, ao que tudo
indica – ou se trata de um trompe
l'oeil?).
Num determinado momento, a câmera aquiesce à
pulsão
escópica e realiza um zoom que mergulha na abertura da
parede:
o olhar se deixa sugar pela natureza num movimento ótico
não
isento de erotismo. Em Através das
Oliveiras,
e mais tarde em O Vento Nos Levará,
o plano que remete concretamente à presença da
câmera
e ao olho do cineasta (nosso olho por procuração)
já
está mais próximo desse jogo de espelhos de Cópia
Fiel: um
quadro rigorosamente
composto no interior do qual se acha um pequeno espelho que inscreve
na imagem o olhar que, a partir de algum ponto cego, organiza o
espaço representado. Mas aqui há um dado novo que não se deve
menosprezar: estamos na Toscana, nascedouro da perspectiva
artificialis e, portanto, da
representação de um “espaço
sistemático”
ordenado em torno de um centro geométrico definido.
Kiarostami, consciente dos significados da
invenção de
Alberti e Brunelleschi, monta uma espécie de armadilha para
o
olho acostumado à perspectiva de ponto de fuga central: o
que
inevitavelmente nos cativa no plano é o espelho, que
não
traz senão o reflexo do que se dá no
fora-de-campo. Em
outras palavras, o campo absorve o fora-de-campo esvaziando-o. O
efeito do enquadramento sobrepuja o da cena. Kiarostami subverte
a fórmula baziniana (o quadro é
centrípeto, a
tela é centrífuga) e fecha o plano sobre o
espaço
de sua própria composição (torna a
tela
centrípeta), obrigando o olhar do espectador a se concentrar
no interior do espaço plástico da imagem, a ver
menos
uma cena ficcional do que uma atividade do quadro.
Ele deixa a
mise en scène em suspenso para jogar com
um certo
número de hipóteses plásticas e
conceituais
contidas na estrutura do quadro.
É
esse o lugar
perigoso em que Cópia Fiel se
instala, flertando com a possibilidade iminente de se esgotar numa
interrogação sobre os próprios
mecanismos de
funcionamento de seus dispositivos. Apesar dessa tendência
auto-reflexiva um pouco sufocante, não é um filme que se
prende num interesse meramente teórico. As
situações criadas com os atores são desiguais, nem
sempre mantêm a mesma força, mas nunca deixam de ser
instigantes e de se arriscar em alguma zona desconhecida.
Kiarostami dá motivos o bastante para embarcarmos em sua
viagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Março de 2011
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