O
que um olhar sobre o
recorde de bilheteria desta última década do
cinema
brasileiro revela é que a chamada retomada foi afinal, de
fato, um recomeço do zero: foi preciso o esforço
mínimo
(intelectual, estético), toda a baixeza de um filme como Se
eu fosse você 2 (o roteiro esdrúxulo de
tão
retardado, mise en scène zero, piadas que reproduzem o humor
sexista mais banal da televisão, somando-se ainda a isso
tudo
a comodidade de uma continuação), para que o
espectador
médio pudesse se acostumar com a incômoda
sensação
de ter de conviver com um cinema nacional. É preciso
acostumar-se ao filme sem percebê-lo, passar em branco, sair
do
cinema como se nem mesmo se tivesse assistido a um filme,
esquecê-lo
assim que se chegou em casa. Só assim a
experiência
começa a ficar suportável.
A
pergunta é:
qual seria então, justamente, o filme mais
incômodo
desta última década? Resposta meio
óbvia: Tropa
de Elite. Porque mesmo se há outros, de menor
público
(ou de público nenhum: Bressane, Bianchi), estes acabam
não
sendo mais do que meras idiossincrasias de antemão previstas
no código do cinema brasileiro – em outras
palavras,
eles não incomodam ninguém. Tropa de
Elite é
o produto de uma indústria, e este texto parte desse
ponto-de-vista. Me parece que o imaginário de um cinema
popular é indissociável de um cinema industrial.
Cinema
A
última década
do cinema nacional foi marcada sobretudo por uma tentativa de ganhar
espaço – nas bilheterias, pelo público,
além
de respeitabilidade da crítica. Nessa espécie de
luta
por sua “modernização”, as
classes
dominantes do cinema nacional não se furtaram ao uso de
forças
e estratégias no sentido torná-lo
consumível,
incorporando ao cinema o apelo de mídias que
forçassem
uma melhor comunicação com o público,
como o
peso da televisão (Se eu fosse você,
Os
normais) ou do viés publicitário (Cidade
de
Deus, Besouro). O que diferencia Tropa
de Elite do
grosso dos filmes comerciais brasileiros desta década
é
que, mesmo sem ser dramaturgicamente brilhante, é um filme
que encontra sua força no caráter artesanal
– que
pode não ser brilhante, mas é próprio
e honesto.
É essa honestidade que faz com que o filme deixe de lado
artefatos como a sociologia, a televisão e o fetichismo
publicitário postiços (três grandes
pragas do
cinema brasileiro contemporâneo), para ir buscar em elementos
eminentemente cinematográficos uma base, um
mínimo
necessário para oferecer ao público um bom filme,
que
capture a empatia do espectador: o dispositivo (ponto-de-vista), o
realismo (mesmo que com a pau pra toda obra
câmera-na-mão),
personagens (um herói carismático), um drama
palpável
(coisa rara no cinema brasileiro), ação,
violência,
comédia escrachada (quem foi o gênio que pensou em
colocar os PMs “vilões” do filme para
serem
sacaneados no treinamento do BOPE no final?). De que é feito
um filme?
Pode-se
atacar o
oportunismo do roteiro, mas ele é traduzido de forma
idônea
pela mise en scène, que se estabelece no terreno da pura
urgência. Não à toa o filme tem uma
energia, um
vigor e uma tensão que são justamente elementos
que
faltam no cenário anêmico do cinema brasileiro
atual,
com suas pálidas reportagens ilustrativas sobre a realidade
nacional – seja sob a forma de fábulas humanistas,
de
documentários toscos ou de filmes-tese roteirizados por uma
certa esquerda do país. Tropa de Elite,
no erro de
Padilha e dos roteiristas, é o retrato da impossibilidade de
se fazer um filme-tese sobre a realidade brasileira. O roteiro
é
tão pé-no-chão que nem consegue olhar
adiante, à
própria frente, o que gera um resultado completamente
ambíguo.
E o que sobra é puro vigor: violência bestial e
moral
duvidosa. Um filme de ação – mas antes
de tudo,
um filme.
Popular
Dizer
que Tropa de
Elite é um filme incômodo faz sentido porque ele
contraria todo a lógica do sistema de
produção
de cinema do Brasil – ele é a evidência
de que
tudo (absolutamente tudo) no sistema e nas pessoas que fazem cinema,
está errado. Porque foi justamente o que deu
“errado”
no filme, o que fugiu às expectativas iniciais de seus
produtores, que abriu a possibilidade para que ele se tornasse um
filme-evento. Sabe-se, por exemplo, que a
narração em
off que guia o filme não estava planejada, que ela
só
foi elaborada depois, durante a montagem. Essa muleta narrativa foi o
que deu ao filme um protagonista, um herói, deixando de ser
apenas mais um retrato bobo da realidade carioca. Depois, houve o
caso do marketing acidental com o vazamento do filme, que fez com que
ele pudesse encontrar o seu público (não a classe
média
freqüentadora dos cinemas, mas as classes populares, nas
ruas).
Por último, veio o
blábláblá moral gerado
após o lançamento do filme, que se foi em grande
parte
fundada num mal-entendido com uma certa elite intelectual do
país,
não deixa de ter sua fonte no caráter
ambíguo e
esquizofrênico desse projeto frankestein que é o
filme.
No fundo, é um filme acidentalmente militarista –
coisa
que nenhum produtor classe A jamais sonharia fazer no Brasil.
O
fato é que
Tropa de Elite escapou da boçalidade de
seu próprio
autor (Padilha é mais sociólogo que cineasta, e
em
entrevistas sempre tentou vender o filme como um veículo de
alteridade para com o policial do BOPE – mas convenhamos que
alteridade é justamente o que não há
em Tropa
de Elite, e é por isso que é um filme
brilhante)
para encontrar seu público sozinho, no mercado negro e nas
ruas – um público que simplesmente não
agüenta
mais engodos publicitários, fábulas humanistas ou
de
mundo cão, além de filmes comerciais francamente
ruins.
2 filhos de Francisco, aposta de cinema popular por
tratar de
ícones sertanejos (outro dos muitos estratagemas e
tentativas
de fazer o cinema brasileiro vingar nesta década), venceu
nas
bilheterias porque conquistou a classe média, enquanto Tropa
de Elite foi justamente o filme que feriu a classe
média,
que se sente mal representada na cartografia plana do filme e se
incomoda com a abordagem direta e truculenta do filme para um tema
quase sempre cercado de atenuantes no Brasil. É um filme de
sensibilidade popular, desconscientizado e descensurado, e que apenas
por isso suporta as suas próprias
contradições
na sua bagunça.
Um
filme liberal e
reacionário, cômico e violento, complexo e
simplório,
oportunista e desgovernado, medíocre e genial.
Tropa
de Elite é
o filme-evento desta década do cinema brasileiro porque
é
a expressão na tela da nossa própria
boçalidade.
Calac Nogueira
Setembro de 2010
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