para Sérgio Alpendre
Quando
eu tinha meus dezoito ou dezessete anos, eu costumava ouvir de
manhã,
antes de sair de casa, o disco Ben (Jorge Ben, 1972). Em geral, na terceira música
(“Paz e
arroz”) eu já estava pronto e tirava a agulha do
vinil.
Era algo quase que cronometrado. Às vezes, achava mesmo
estranho que tudo o que eu tivesse que fazer antes de sair de casa
durasse o exato tempo de três faixas de um long-play (daquele
long-play) de 12 polegadas.
Na
era do CD, Ben continuou
a ser quase que religiosamente ouvido. Com o tempo, um pouco menos.
Não importa: o fato é que, com a
mudança de
suporte, nunca mais ouvi o mesmo disco. Não se trata de
má
reprodução, embora o vinil seja melhor. Depois de
algum
tempo (anos) é que descobri que se tratava de uma
questão
de tempo. A versão em CD de Ben
tinha uma diferença fundamental: o espaço
temporal
entre as faixas. Qualquer música exige silêncio
depois.
Mesmo que de apenas alguns segundos. A versão CD de Ben
não tinha os mesmos segundos entre-faixas da
versão
vinil. Praticamente emendava uma música na outra. Quem
conhece
a obra de Jorge Ben sabe que a maior parte das
composições
que ele gravou termina em fade.
Esse fato disfarçava um pouco a diferença entre a
distância das faixas, no vinil e no CD. O fade
prepara o ouvinte para a despedida. Mas em casos raros como
“Moça”,
quarta faixa de Ben,
que termina sem fade,
a emenda imediata com “Domingo 23” é
muito
prejudicial para o final de uma e o início da outra, pois
não
leva em consideração a capacidade
hipnótica do
compositor. É preciso tempo, uma pausa de mil compassos para
que se possa entrar em outro assunto. Por que não?
A
distância física entre uma faixa e outra, no
vinil, e a
abrupta passagem, quase um atropelo, entre as faixas do CD me fazem
pensar em como questões
técnico-tecnológicas
mudam de forma radical a relação que temos com o
prazer. Este texto não é saudosista –
não
vou fazer aqui a apologia da forma antiga para invalidar a atual.
O
fato é que, assistindo a filmes brasileiros antigos
(primeira
questão: o que são filmes brasileiros antigos?),
percebo uma diferença em relação aos
filmes
brasileiros contemporâneos (segunda questão), da
mesma
forma como percebo que Ben versão
vinil ou CD são diferentes: é uma
questão de
tempo.
No
caso do cinema brasileiro: diferença entre o tempo entre uma
frase dita e uma resposta. Um gesto e uma reação.
Há
também diferenças no tratamento do som ambiente.
Um
carro passando. Som? Silêncio?
Diferença
entre escolha de planos. Geral ou close?
Godard:
a grande questão do cinema é saber quando se
começa
e quando se termina um plano.
Cinema:
tempo de vida.
Cinema:
tempo entre um plano e outro.
Intervalo.
Por que e como passar de uma ação a outra? O
corte:
qual a sua necessidade? (talvez hoje seja o caso de se voltar a
pensar que o corte é em si a substância do plano,
como
qualquer teórico dos anos 10 diria, já que entre
um
corte e outro é preciso existir, de fato, um plano).
Para
alguém de fora (ou de dentro sabe-se lá de
quê),
o diagnóstico do que falo poderia ser melancolia,
mas acredito que entre a verdade mil vezes dita e a crença
no
amor existe a arte. Um filme é um filme; hoje é
necessário perguntar o que é um filme.
Um
filme pode ser o nosso próprio olhar mas pode ser
também
o preço de nossas lentes de contato.
Escrever
para ser lido em uma tela de computador altera o que se tem a dizer?
Acredito
que sim.
Direi:
é preciso ver alguns filmes em vinil para se poder sentir a
diferença entre as faixas existentes dentro
e fora
do quadro.
Um
filme como Preço
do desejo
(1952) é mais cinematográfico que Quincas
Berro D’Água
(2010). Mas... é necessário ser
cinematográfico
hoje?
O
filme dublado é mais realista que o filme em som direto.
Prefiro
a canastrice.
Planos
longos são hoje paródicos. Tudo bem: a chanchada
sempre
foi feita com planos longos.
Hélio
Silva é um atirador. Vide O
matador profissional.
É
Simonal
é o lado B do Roberto Carlos. Seu Jorge daria um bom filme,
mas dose é ter de aturar modelo
conspiração.
O
filme nipo-brasileiro E
a paz volta a reinar
é péssimo. Mas qualquer filme brasileiro depois
de 10
anos de idade se torna interessante.
Remier,
pesquisador e programador, comparou Bonitinha
mas ordinária
(J. P. de Carvalho, 1963) a Mulher
de Todos
(Rogério Sganzerla, 1970). Tem toda razão. Basta
comparar os personagens de Fregolente no filme de Nelson Rodrigues e
o de Jô Soares no filme de Sganzerla. Besteira comparar
Sganzerla a cinema novo.
Juventude
sem amanhã
é um breviário de um cinema brasileiro que
não
houve. Está tudo ali. Assistir ao filme é como
constatar a ausência de uma real indústria
cinematográfica. É evidente que a culpa
não é
do filme.
Lilian
M: Relatório Confidencial:
sempre fui fã incondicional desse filme. Acabei de baixar o As
safadas
e o começo do filme do Carlão é
genial. Planos
de cima, de conjunto, dentro do exíguo espaço de
um
fliperama. Dei stop depois que um personagem olha pra uma
moça
– a rainha do fliperama – e pergunta o nome dela.
Depois
assisto com calma, será um prazer.
Gregório
38.
Filme triste, melancólico, Alex Prado é uma
espécie
de Charles Chaplin da Boca. Há um close
em que ele aparece chorando, insertado entre dois planos de conjunto.
O close
nada tem a ver com os outros dois planos. Nunca mais isso
sairá
da minha cabeça.
Os
desclassificados.
Me impressionou mais o diretor, Clery Cunha, do que o filme. Muito
simpático, parece o Tom Zé, só que com
a Boca do
Lixo e o SBT no histórico, o que o faz ter noite dentro
daquilo que fala. Tem um argumento sensacional sobre um
operário
que cai de um andaime e depois é salvo só porque
alguém
passa e dá à sua mulher um santinho. O santinho
é
colocado debaixo do travesseiro do convalescente. Ele se recupera
milagrosamente. Ninguém tinha fé, mas acontece.
Rossellini. Clery Cunha tem um pensamento cubista: monta o meio de
uma frase com outra, o que dá uma visão
espaço-temporal
de sua angústia.
Caveira
my friend:
acreditar em filme marginal é pensar como cinemanovista. O
cinema marginal não existe e se existe ele é
muito mais
ambicioso do que se possa imaginar. Existem diretores, filmes,
vontade de filmar. Caveira
my friend
é um bode, apesar da música dos Novos Baianos, da
Baby
novinha, da Sônia Dias, do ator que faz o Caveirinha e da
fotografia em preto e branco. O resto achei um saco, confirmando o
que senti dez anos antes naquela mostra do Puppo.
Perfume
de Gardênia.
Filmaço. Só a burrice, como disse a pesquisadora
Anna
Karinne, pode ter desprezado esse filme quando ele surgiu. Canastrice
necessária, artificialismo, decupagem.
Viagem
ao fim do mundo:
a melhor forma de conhecer Fernando Coni Campos, já que a
vida
não nos deu essa oportunidade.
Damas
do Prazer:
Antônio Meliande, o diretor, enfileira as atrizes em uma rua.
Tensão. Estamos com ela e com elas. Um carro chega. Quem
será?
Quem é que está dentro? Nada disso tem
importância.
O que está em primeiro plano são vozes dubladas
falando
de problemas concretos. Dinheiro, violência. Num restaurante,
um fudido bebe conhaque e tenta se enturmar com as putas que
estão
tentando engolir o jantar. O papo dele é
chatíssimo.
Uma delas (Irene Estefânia) se levanta, deixa a salada de
batata com alface na mesa. Vemos o prato, vemos a comida, vemos o
olhar do cara, vemos a puta se levantando e saindo, sentimos seu
cheiro. Tudo feito em dois ou três planos de conjunto, nenhum
close ou plano de detalhe. Obra-prima.
Ninfas
diabólicas.
Soco na classe-média. A primeira sequência mostra
uma
espécie de comercial de margarina com mulher feliz e marido
(o
excepcional Sérgio Hingst) submisso se fazendo de
responsável.
Ele leva os filhos na escola. Depois pega uma estrada, encontra duas
diabólicas ninfetas (as sensacionais Patrícia
Scalvi e
Aldine Müller) e se revela: fascista brasileiro, de cueca e
moralismo à mostra. Fotografia de Ozualdo Candeias, roteiro
de
Ody Fraga, direção de John Doo.
Cala
a boca Etelvina.
No debate, Aloísio T. Carvalho – que
lançou Zé
Trindade e fez um filme com Violeta Ferraz de protagonista –
falou que todo rosto humano tem um lado simpático e outro
antipático. Para uma determinada comédia, ele
decidiu
filmar a atriz a partir de um só ângulo. Isso
é
uma prova do quanto estamos atrasados ao falarmos de chanchadas.
Sequer pensamos nisso ao vermos um filme com Dercy
Gonçalves,
que aliás deveria ser nome de escola de cinema. Ela foi
dirigida por Eurides Ramos, que deixou aparecer, em um plano,
atrás
de Paulo Goulart, os letreiros ESTÚDIO B (ou A) no fundo da
pintura ou do papel de parede do cenário de um apartamento
de
classe média alta. Isso só aparece em 35mm. Moniz
Vianna e Alex Viany viram isso na época.
Uma
aventura aos 40,
A filha
do advogado,
A grande
feira,
Macaco
feio... macaco bonito...,
Matar ou correr,
Na senda
do crime,
Nem
Sansão nem Dalila,
O
pagador de promessas,
O saci,
Terra em
transe
são filmes clássicos.
Luís Alberto Rocha Melo
Setembro de 2010
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