Em São Paulo, no mês de abril,
quando a mostra “Clássicos e Raros do Nosso Cinema”
foi inaugurada, o museu Estação Pinacoteca exibia “Andy
Warhol – Mr. America”. Fazer a dobradinha da exposição
e da sessão de Perfume de Gardênia, de Guilherme
de Almeida Prado, me provocou inúmeros questionamentos.
Quando uma exposição como aquela vem para o Brasil,
não há quem não festeje. Um grande artista, belas obras,
uma oportunidade imperdível. O que ninguém parece entender,
no entanto, é o verdadeiro sentido do trabalho em questão,
aquilo que alçou Warhol ao panteão dos maiores da história
da arte. Ponto número um: suas obras são totalmente
conectadas à cultura dentro da qual foram produzidas;
há uma ligação fundamental entre o substrato cultural
do qual o artista se alimentava e os materiais e os
temas utilizados por ele, um elo que permitia que seus
trabalhos tanto fossem reflexos significantes do mundo
ao seu redor quanto um produto acabado perfeitamente
integrado a este mundo. Se a lógica da sociedade americana
encontra-se tão perfeitamente refletida em seus trabalhos
é porque Warhol amava o seu país, amava a sociedade
de consumo, amava as sopas Campbell, a Coca-Cola, o
dinheiro e as vedetes. Suas obras nunca seriam tão verdadeiras
e tão impactantes se tivessem sido realizadas sob a
ótica do cinismo.
E é precisamente esta capacidade de articulação (e esse
amor) que falta ao cinema brasileiro hoje. Nossos filmes
são fruto de projetos formatados para se enquadrarem
em leis; projetos que por sua vez são escritos por artistas
ou intelectuais dotados a maior parte das vezes de autoconsciência
crítica. Não há organicidade possível entre um produto
cultural e a sociedade que o receberá quando qualquer
impulso, mais ou menos criativo, mais ou menos comercial,
passa primeiro por um amplo esquadrinhamento. Sabemos,
claro, que o processo de produção de um filme é coisa
longa e demorada, mas este esquadrinhamento de que falo
diz na verdade respeito a uma preocupação que contamina
previamente o olhar dos cineastas, e não apenas a procedimentos
de realização. No funil que separa aqueles a quem será
concedido o direito de filmar de forma minimamente profissional
(ou seja, sendo remunerado, podendo pagar pelos equipamentos
utilizados e não necessitando recorrer a favores de
amigos) e o restante reside uma lógica que obriga que
antes de serem cinema, os futuros filmes sejam projetos.
Ora, sabemos que a toda burocratização corresponde um
engessamento progressivo. É isso: o cinema brasileiro
está engessado. A “contrapartida social” foi incorporada
ao inconsciente da classe artística e intelectual: para
usufruir do dinheiro dos impostos dos cidadãos, para
fazer jus ao dinheiro público investido, deve-se traduzir
na obra um sentido qualquer de utilidade pública. A
“utilidade pública”, quando pensada assim, nunca chegará
perto de configurar um elo profundo entre uma obra e
a sociedade, apenas poderá servir de trunfo para destacá-la
na prateleira de uma biblioteca ou mediateca, ou para
torná-la material de referência em salas de aula.
Mas é importante lembrar que não foi sempre assim: houve
um dia em que boa parte dos cineastas no Brasil não
eram egressos de cursos de cinema e não haviam sido
formatados para pensar seu ofício a partir do escopo
restrito do métier ou das formatações burocráticas
das leis de incentivo. E é por isso que a mostra “Clássicos
e Raros” me veio como um refresco, como a aula de história
de que nunca podemos abrir mão e como inspiração para
pensar o cinema do presente. Nela foi possível tomar
contato com filmes muito menos celebrados do que os
atuais, mas muito mais significativos como produtos
culturais do seu tempo. E foi assim que pude ver, entre
outras preciosidades, o já citado Perfume de Gardênia,
longa rodado em 1991, logo após o fechamento da Embrafilme.
Ora, a satisfação de ver um filme como este não está
no deleite com marcas estilísticas, com o trabalho pioneiro
com os atores, nem com a sensibilidade do autor para
tratar deste ou daquele tema, mas em perceber que a
caracterização dos personagens e dos ambientes e o desenvolvimento
do drama estão totalmente conectados ao imaginário compartilhado
de seu tempo. Os movimentos de câmera e os enquadramentos
de Almeida Prado estão lá para atestar seu savoir-faire
e talentos particulares, mas não são eles que dão vida
ao filme. Ao assistir Perfume de Gardênia temos
a compreensão perfeita da realidade que alimenta a construção
da ficção cena a cena, e que faz avançar a trama. Não
é necessário que a interpretação seja hiper-naturalista
nem que o roteiro prescinda de viradas improváveis,
pois a dimensão de representação encontra-se sob domínio
completo do realizador e em consonância com o que o
espectador médio compreendia como representação à época
da realização do filme.
Cada vez mais se pensa e se estuda cinema no Brasil,
mas cada vez menos se vê os filmes brasileiros não-contemporâneos,
à exceção daqueles consagrados pelos “estudos de cinema”,
justamente. Desta forma, seguiremos fazendo filmes ineptos
para ganhar verdadeiramente o público (e com ele, o
mercado), por serem estes desvinculados de um sistema
de representação compartilhado, com o qual qualquer
espectador pudesse se conectar, independentemente da
classe social retratada. Não seria este o motivo do
sucesso inabalável das telenovelas no Brasil? (O desejo
de forjar uma nação unificada teria incorporado desde
o tempo dos militares o mote do amor pelo país – ainda
que um país idealizado que pouco corresponda à multiplicidade
e aos entraves do país real – para moldar ficções de
fácil consumo que “vendessem” um determinado modelo
de mundo.) Colocando-se de lado qualquer valoramento
estético, é fato que a teledramaturgia brasileira encontra-se
conectada com o seu povo por um conjunto de referências
comuns que lhe servem de base. Estas referências, naturalmente,
vão desde gírias e costumes a padrões comportamentais
e valores culturais que se reproduzem sem saber.
A partir do momento que a existência destas referências
torna-se motivo de justificativa para a representação
se dar, e não apenas sua conseqüência natural, a autoconsciência
contamina o processo de tal forma que gera um entrave
inevitável ao consumo trivial, não-alerta, do produto
final.
Para que uma obra de impacto cultural assemelhado à
de Warhol pudesse quem sabe um dia surgir aqui, é este
consumo “cinematográfico” que se deveria fomentar no
Brasil. Não o consumo especializado em centros culturais
ou salas de aula, mas o consumo “de rua”, de esquina,
de banca de jornal. Aquele que permite que se assimile
e reproduza as referências “automaticamente”. Pois talvez
com ele pudéssemos voltar a ter uma produção cinematográfica
realizada verdadeiramente no espaço urbano, que captasse
a circulação “suja” de pessoas, os marcos arquitetônicos
do nosso tempo, os hábitos e trejeitos variados da população.
Que por sobre tudo isto imprimisse este ou aquele estilo
(o traçado artístico), assim como a impostação de voz
e o gestual trabalhados pelas técnicas atuais de interpretação.
Para que daqui a trinta anos, os filmes de nossa época
pudessem ser vistos como uma expressão geracional mais
consistente do que um mero maneirismo difuso e massivo,
estilhaçado entre mil imperativos – poucos (ou nenhum)
dos quais de ordem verdadeiramente artística.
Tatiana Monassa
Setembro
de 2010
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