63º FESTIVAL DE CANNES

Copie Conforme, Abbas Kiarostami, França/Itália, 2010
(COMPETIÇÃO)

Ha Ha Ha, Hong Sang-soo, Coréia do Sul, 2010
(QUINZENA DOS REALIZADORES)

Desvios e decepções


Passamos grande parte do festival em busca de boas surpresas – a descoberta de Michelangelo Frammartino, por exemplo – ou de confirmações positivas de altas expectativas – Godard, Manoel de Oliveira, Apichatpong, o que naturalmente se tornou o foco de nossa cobertura. O fato é que até aqui falamos muito pouco sobre as decepções, ou sobre os filmes que simplesmente representam uma “fuga ao padrão” de seus diretores.

Copie conforme é um desses casos, de uma maneira estranha. Muito do que se conhece do cinema de Abbas Kiarostami, a notar seu radicalismo no trabalho de câmera e na montagem, aqui desaparece, e em muitos sentidos estamos mais perto do cinema aburguesado (não necessariamente ruim) de Richard Linklater que de qualquer outra coisa. A questão é que ainda assim o filme tem um trabalho que impressiona – e que certamente nasce do cruzamento entre a excelência de Kiarostami como diretor de ator e o enorme talento de Juliette Binoche – a saber a transformação de uma mentira em uma verdade na tela, em si uma construção nada simples.

Mas se Kiarostami apresentou nesse festival um filme que representa um desvio enigmático, talvez mais para pior que para melhor, em relação ao restante de sua obra, Ha Ha Ha, de Hong Sang-soo, me parece um caso muito mais grave, o caso mesmo de uma decepção. E o fato de que este, que talvez seja o seu pior filme, lhe rendeu pela primeira vez um prêmio em Cannes (e concedido por Claire Denis) torna tudo ainda mais incompreensível.

Hong Sang-soo é certamente um dos maiores diretores que se tornaram conhecidos nos últimos dez anos, não apenas pela maneira extremamente particular com que filma, atualizando o zoom e as panorâmicas curtas como ninguém soube fazer melhor recentemente, mas também pela forma completamente anárquica com que ele conduz seus filmes, no que reside em grande parte seu enorme talento para a comédia. Isso porque seus filme parecem sempre nascidos de uma não-estrutura, uma soma banal de aleatoriedades em direção às situações mais absurdas e no entanto altamente reconhecíveis – é assim que ele nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. Seus personagens são anti-arquétipos, seus filmes são anti-conceituais. A impressão é de que tudo está ali, acontecendo na tela. Os personagens riem, choram, se revoltam, se declaram (bêbados, quase sempre), e toda a emoção é densa e profunda, justamente porque não parece presa a nenhum a priori, nenhuma estrutura que a aprisiona dentro de uma visão – os filmes de Hong Sang-soo são antes tácteis que visuais.

Ha ha ha é nesse sentido um retrocesso em relação ao cinema que Hong vinha desenvolvendo até aqui – seu último filme, Like you know it all, ia particularmente longe nessa proposta de narrativa anárquica – uma obra claramente pré-formatada, cheia de limitações para os seus próprios rumos. No filme, um encontro entre dois amigos gerencia a narrativa – sentados numa mesa de bar (cena que só veremos através de fotografias still em preto-e-branco), eles narram os acontecimentos vivenciados por cada um na mesma cidade, no mesmo período de tempo – o que permite um entrecruzamento constante de personagens entre uma história e outra, exceto pelos protagonistas que nunca se encontram. O problema é que sempre que essas narrativas em flashback começam a ganhar vida própria e fugir do controle, o filme necessariamente retorna ao presente, ao discurso indireto. Isso porque a história a ser contada por um dos personagens nunca pode ganhar maiores dimensões que a do outro, o que pressupõe a constante obrigação do corte – de volta às fotografias em p&b, pausa para comentar, pausa para o hahaha e em seguida “bebemos” – convite para que o outro dê prosseguimento a sua história.

É assim que o humor de Ha ha ha aparece de maneira bem menos sutil e elaborada que nos filmes anteriores de Hong Sang-soo. As piadas são mais literais, mais diretas – não há tempo para desenvolvê-las, é preciso que tudo se submeta à ordem totalizante pré-estabelecida. O discurso dos personagens parece a todo tempo um tanto forjado, sem muita verdade, apesar de todo o talento (inegável mesmo aqui) de Hong para filmar cenas de amor ou de decepção amorosa. Ainda assim é possível rir e se emocionar em alguma medida, mas sem dúvida esperávamos mais.

Alice Furtado


Maio de 2010