Copie Conforme, Abbas Kiarostami, França/Itália, 2010
(COMPETIÇÃO)
Ha Ha Ha, Hong Sang-soo, Coréia do Sul, 2010
(QUINZENA DOS REALIZADORES)
Desvios
e
decepções
Passamos
grande
parte do festival em busca de boas surpresas – a descoberta
de
Michelangelo Frammartino, por exemplo – ou de
confirmações
positivas de altas expectativas – Godard, Manoel de Oliveira,
Apichatpong, o que naturalmente se tornou o foco de nossa cobertura.
O fato é que até aqui falamos muito pouco sobre
as
decepções, ou sobre os filmes que simplesmente
representam uma “fuga ao padrão” de seus
diretores.
Copie
conforme
é um desses casos, de uma maneira estranha. Muito do que se
conhece do cinema de Abbas Kiarostami, a notar seu radicalismo no
trabalho de câmera e na montagem, aqui desaparece, e em
muitos
sentidos estamos mais perto do cinema aburguesado (não
necessariamente ruim) de Richard Linklater que de qualquer outra
coisa. A questão é que ainda assim o filme tem um
trabalho que impressiona – e que certamente nasce do
cruzamento
entre a excelência de Kiarostami como diretor de ator e o
enorme talento de Juliette Binoche – a saber a
transformação
de uma mentira em uma verdade na tela, em si uma
construção
nada simples.
Mas
se Kiarostami
apresentou nesse festival um filme que representa um desvio
enigmático, talvez mais para pior que para melhor, em
relação
ao restante de sua obra, Ha Ha Ha, de Hong
Sang-soo, me parece
um caso muito mais grave, o caso mesmo de uma
decepção.
E o fato de que este, que talvez seja o seu pior filme, lhe rendeu
pela primeira vez um prêmio em Cannes (e concedido por Claire
Denis) torna tudo ainda mais incompreensível.
Hong
Sang-soo é
certamente um dos maiores diretores que se tornaram conhecidos nos
últimos dez anos, não apenas pela maneira
extremamente
particular com que filma, atualizando o zoom e as
panorâmicas
curtas como ninguém soube fazer melhor recentemente, mas
também pela forma completamente anárquica com que
ele
conduz seus filmes, no que reside em grande parte seu enorme talento
para a comédia. Isso porque seus filme parecem sempre
nascidos
de uma não-estrutura, uma soma banal de aleatoriedades em
direção às
situações mais absurdas
e no entanto altamente reconhecíveis –
é assim
que ele nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. Seus personagens
são
anti-arquétipos, seus filmes são
anti-conceituais. A
impressão é de que tudo está ali, acontecendo
na tela. Os personagens riem, choram, se revoltam, se declaram
(bêbados, quase sempre), e toda a
emoção é
densa e profunda, justamente porque não parece presa a
nenhum
a priori, nenhuma estrutura que a aprisiona dentro
de uma
visão – os filmes de Hong Sang-soo são
antes
tácteis que visuais.
Ha
ha ha é
nesse sentido um retrocesso em relação ao cinema
que
Hong vinha desenvolvendo até aqui – seu
último
filme, Like you know it all, ia particularmente
longe nessa
proposta de narrativa anárquica – uma obra
claramente
pré-formatada, cheia de limitações
para os seus
próprios rumos. No filme, um encontro entre dois amigos
gerencia a narrativa – sentados numa mesa de bar (cena que
só
veremos através de fotografias still em
preto-e-branco), eles narram os acontecimentos vivenciados por cada
um na mesma cidade, no mesmo período de tempo – o
que
permite um entrecruzamento constante de personagens entre uma
história e outra, exceto pelos protagonistas que nunca se
encontram. O problema é que sempre que essas narrativas em
flashback começam a ganhar vida
própria e fugir
do controle, o filme necessariamente retorna ao presente, ao discurso
indireto. Isso porque a história a ser contada por um dos
personagens nunca pode ganhar maiores dimensões que a do
outro, o que pressupõe a constante
obrigação do
corte – de volta às fotografias em p&b,
pausa para
comentar, pausa para o hahaha e em seguida
“bebemos”
– convite para que o outro dê prosseguimento a sua
história.
É
assim que o
humor de Ha ha ha aparece de maneira bem menos
sutil e
elaborada que nos filmes anteriores de Hong Sang-soo. As piadas
são
mais literais, mais diretas –
não há tempo
para desenvolvê-las, é preciso que tudo se submeta
à
ordem totalizante pré-estabelecida. O discurso dos
personagens
parece a todo tempo um tanto forjado, sem muita verdade, apesar de
todo o talento (inegável mesmo aqui) de Hong para filmar
cenas
de amor ou de decepção amorosa. Ainda assim
é
possível rir e se emocionar em alguma medida, mas sem
dúvida
esperávamos mais.
Alice Furtado
Maio de 2010
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