63º FESTIVAL DE CANNES

Outrage, Takeshi Kitano, Japão, 2010
(COMPETIÇÃO)


Elementar

Outrage
pode não ser o melhor filme do festival, mas é muito provavelmente o mais divertido de todos. E também é o que tem o personagem mais engraçado: o embaixador de um país africano no Japão, que se vê obrigado pela máfia a abrir um cassino no local da embaixada, onde o jogo é uma atividade legalizada. Não existe praticamente nenhuma cena no filme inteiro em que algum personagem não esteja apanhando ou morrendo, e uma das melhores é quando Otomo (interpretado pelo próprio Kitano) ataca um personagem rival em pleno consultório odontológico. A câmera está em plongée zenital sobre o personagem deitado na cadeira reclinada. Otomo chega e após um curto plano/contraplano entre ele e o personagem deitado, com a câmera sempre em posição zenital (180º em relação ao chão), vem o ataque na boca do personagem, que é cerrada com algum instrumento médico. O sangue salta como uma pequena mancha que vai crescendo e borrando aquele quadro límpido, numa redução dos elementos a um mínimo elementar – sua composição meramente plástica e sua disposição geométrica dentro quadro.

É uma cena (um plano, mais precisamente) que capta bem o humor do filme de Kitano, seu sentido gráfico de redução (formas e contornos, ou: como, de que maneira, matar um personagem?). Há bastante em comum entre este e os últimos filmes do diretor (Aquiles e a Tartaruga e Glória ao Cineasta), que também eram compostos quase que exclusivamente de gags puras, quase naifs. Mas é sobretudo a montagem o que coloca Outrage muito à frente de seus filmes mais recentes. Apesar do fato de que é o próprio Kitano quem geralmente monta seus filmes, ela talvez nunca tenha sido tão fluida como aqui. As seqüências são como blocos rigorosos que parecem ter todos a mesma exata duração, num efeito de superposição que reforça a redução elementar não só dos elementos do quadro, como da própria trama (a velha história de cães e gatos da máfia que procuram se superar entre si para subirem na hierarquia, matando uns aos outros). A violência é suave, pura, transparente, e o humor vem justamente do confronto da câmera com este óbvio.


Calac Nogueira

Maio de 2010