Outrage, Takeshi Kitano, Japão, 2010
(COMPETIÇÃO)
Elementar
Outrage pode não ser o melhor filme do festival, mas
é muito provavelmente o mais divertido de todos. E também é o que tem o personagem
mais engraçado: o embaixador de um país africano no Japão, que se vê obrigado
pela máfia a abrir um cassino no local da embaixada, onde o jogo é uma
atividade legalizada. Não existe praticamente nenhuma cena no filme inteiro em
que algum personagem não esteja apanhando ou morrendo, e uma das melhores é
quando Otomo (interpretado pelo próprio Kitano) ataca um personagem rival em
pleno consultório odontológico. A câmera está em plongée zenital sobre o
personagem deitado na cadeira reclinada. Otomo chega e após um curto
plano/contraplano entre ele e o personagem deitado, com a câmera sempre em
posição zenital (180º em relação ao chão), vem o ataque na boca do personagem,
que é cerrada com algum instrumento médico. O sangue salta como uma pequena
mancha que vai crescendo e borrando aquele quadro límpido, numa redução dos
elementos a um mínimo elementar – sua composição meramente plástica e sua
disposição geométrica dentro quadro.
É uma cena (um plano, mais precisamente) que capta bem o
humor do filme de Kitano, seu sentido gráfico de redução (formas e contornos,
ou: como, de que maneira, matar um personagem?). Há bastante em comum
entre este e os últimos filmes do diretor (Aquiles e a Tartaruga e Glória
ao Cineasta), que também eram compostos quase que exclusivamente de gags puras, quase naifs. Mas é sobretudo a montagem o que coloca Outrage muito à frente de seus filmes mais recentes. Apesar do fato de que é o próprio
Kitano quem geralmente monta seus filmes, ela talvez nunca tenha sido tão
fluida como aqui. As seqüências são como blocos rigorosos que parecem ter todos
a mesma exata duração, num efeito de superposição que reforça a redução
elementar não só dos elementos do quadro, como da própria trama (a velha
história de cães e gatos da máfia que procuram se superar entre si para subirem
na hierarquia, matando uns aos outros). A violência é suave, pura,
transparente, e o humor vem justamente do confronto da câmera com este óbvio.
Calac Nogueira
Maio de 2010
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