63º FESTIVAL DE CANNES

Le Quattro volte, Michelangelo Frammartino, Itália/Alemanha/Suíça, 2010
(QUINZENA DOS REALIZADORES)


Michelangelo Frammartino é um diretor estreante em Cannes, no entanto é relativamente conhecido pelas platéias européias por seu filme anterior, Il dono, em sua passagem pelos festivais. De fato, diante deste Le Quattro volte, fica a constatação de que se trata de um cineasta digno de atenção. De imediato, a impressão é de que Frammartino é um aficcionado do plano-seqüência, não como esteta, mas como alguém que crê na duração e na unidade do plano como o lugar privilegiado da ação e da descoberta, ainda que isso implique na espera quiçá interminável até que se consiga filmar um momento de parto, ou em encenar (maravilhosamente) seres ou objetos não-encenáveis, como uma árvore ou um cabrito.

Le Quattro volte, tal qual o título sugere, é dividido em quatro partes. Na passagem entre cada uma delas, o filme opera uma alteração de ponto de vista e, conseqüentemente, de protagonista – a árvore e o cabrito, por exemplo, são os personagens centrais de duas destas partes. A questão é como Michelangelo Frammartino articula estes diferentes momentos entre si a partir de uma lógica de causalidade ao mesmo tempo caótica e banal, que pressupõe uma construção espacial complexa – é assim que as paisagens da Calábria, lugar idílico onde se passa o filme, não são apenas objetos dignos de contemplação, mas dados necessários para a articulação global do filme. Precisamos conhecer intimamente esse espaço – onde fica a casa do velho pastor (que protagoniza a primeira parte), como ela se relaciona com a entrada do pasto e como o pequeno vilarejo se distribui geograficamente para que todo o desenvolvimento narrativo se passe da forma mais natural possível. O interesse está na forma como Frammartino se apropria de certos clichês acadêmicos do cinema contemporâneo – a dilatação dos tempos mortos, a ausência de falas, a exacerbação de uma sensibilidade para a beleza do mundo – para enquadrá-los em uma ordem clássica de causa e efeito, contrariando todas as expectativas e preconceitos. No limite, trata-se de um filme sobre o espaço, representado nessa região particular da Calábria, que põe em cena a observação ao mesmo tempo clínica e sentimental dos efeitos do tempo sobre ele.

Ao final se conclui que Le Quattro volte é mais um desses filmes de narrativa cíclica, que termina por onde começou. Mas, ao contrário do que se pode supor, é com extrema inteligência que Frammartino atualiza essa desgastada fórmula para tematizar um desgastado assunto – o ciclo da vida, sobre o qual certamente nunca houve abordagem igual. Nada mal para quem se decepcionou enormemente com a ausência de The Tree of Life nesse festival.

Alice Furtado

Maio de 2010