Aurora, Cristi
Puiu, Romênia, 2010
(UN CERTAIN REGARD)
Se levarmos em conta tudo o que
um filme como Aurorarepresenta
para os festivais de cinema dos últimos cinco ou dez anos, veremos, em primeiro
lugar, que se trata de um filme pouco original. Ora, um filme de três horas de
duração composto quase que inteiramente de ações banais já não impressiona mais
ninguém há algum tempo, e essa proposta de filmar os personagens e seus
espaços, reforçando sua fisicalidade e suprimindo todo o essencial para a compreensão
da história, talvez seja um dos grandes clichês do cinema contemporâneo –
diversos diretores já foram fundo nisso, bons ou ruins, de Hou Hsiao-Hsien a
Lisandro Alonso. E se olharmos bem, o ponto de partida estrutural (conceitual)
do filme, é bastante bobo, e de certa maneira até mesmo indigno: esconder tudo
(absolutamente tudo) do espectador, e forjar um falso suspense no qual cada
pequeno gesto é uma falsa pista para que o espectador tente decifrar o
indecifrável – quais as reais motivações do personagem? O que o move? Qual a sua
relação exatamente com os outros personagens que aparecem?
O maior
mistério é tentar explicar como, mesmo assim, depois de tudo isso, Aurora consegue ainda ser um filme bom. A primeira opção talvez seja tentar encarar o
filme de Puiu menos naquilo que ele teria de “radicalidade” e “pretensão” que
no que ele tem de labor, de trabalho, de reconhecimento de uma forma dada – já
vista. O fato é que Puiu é muito provavelmente o diretor mais talentoso de toda
a safra recente de cinema romeno que invadiu os festivais nos últimos anos.
Isso fica visível, por exemplo, nos pontos de contato que seu filme tem com 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, que acabou levando a Palma de Ouro em
2007. São dois filmes que partem de um mesmo modo de articular o fora-de-campo
com um contexto social (ou político) mais geral, enquanto o papel da câmera é o
de sublinhar a corporalidade dos personagens em um ambiente hostil. Só que se o
filme de Mungiu era movido sobretudo por uma urgência de falar sobre um assunto
(a política, não o aborto), numa impetuosidade que o conduzia facilmente daí ao
abjeto, Aurora é um filme bem mais calculado, consciente de suas
próprias operações.
Porque não
se trata só de um filme sobre um personagem psicótico e amargurado com a vida,
cujos atos de brutalidade permanecem inexplicáveis pelo fato de que o discurso
do filme gira em torno justamente de uma crítica à “explicabilidade” e aos
modos de categorização dos atos pela sociedade (ou a polícia, o que dá no mesmo).
E por sociedade poder-se-ia ler ainda: o público, que viu tudo e não entendeu
nada. Quer dizer, o filme é sobre isso, mas não é só isso. Puiu estende sua
proposta inicial (o tal cinema que acompanha o personagem por seus espaços e em
gestos banais) a um limite completamente absurdo. O cacoete do cinema
contemporâneo é tratado aqui como doença, ele aparece transtornado, sob a forma
de um mal-estar da obsessão. No fundo, o filme é abertamente um jogo de
manipulação do espectador, um percurso cego e obsessivo por um mundo calculado
em cada curva, em cada encontro de personagens hostis entre si, em cada paisagem
ou ação inspiradora de um mal-estar – a principal delas, a situação de um
assassino amador, seu planejamento minucioso e desesperado (comprar uma arma, escolher
o lugar perfeito, aguardar o momento exato, ir e vir sem parar, quantas vezes
forem necessárias).
Aurora é um filme forjado (mas que não inclui trapaça nenhuma). Puiu sabe exatamente o
que procura e sabe como alcançá-lo. Muitos vão dizer que o discurso político do
filme é toscamente inserido. Eu acho a ironia do final desafiadora, e parte
dela está justamente nessa gratuidade, que deixa um vácuo entre o que o filme
diz ser e o que ele verdadeiramente é. E é bacana que o filme encontre o seu
sentido (ou um de seus sentidos) num discurso plano e oral – é uma escolha que
vem justamente para driblar os clichês deste cinema dos “pequenos gestos”. Mesmo
que de forma torta, o filme encontra a sua alteridade. No fim, tudo aqui está
mais para Elefante do que qualquer outra coisa.
Calac Nogueira
Maio de 2010
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