63º FESTIVAL DE CANNES

O Estranho Caso de Angélica, Manoel de Oliveira, Portugal/Espanha/França/Brasil, 2010
(UN CERTAIN REGARD)


Quanto mais longe Manoel de Oliveira nos faz retornar no passado do cinema, quanto mais ele insiste em uma simplicidade fabular que remete à saudável ingenuidade dos primeiros filmes, mais evidente fica sua modernidade face às caretices formais e narrativas que contaminam boa parte do cinema de hoje. Após o belo Singularidades uma Rapariga Loura, o realizador português retorna com mais uma história de amor, novamente situada num Portugal um tanto atemporal, onde o vestuário, o cenário e a ritualística da primeira metade do século XX coexistem com os mais modernos modelos de carro e com os ecos da crise econômica dos últimos anos.

Com um argumento não muito distante de A Fronteira da Alvorada (não por acaso, provavelmente o filme mais “direto ao ponto” de Philippe Garrel), O Estranho Caso de Angélica conta a história de um fotógrafo que se apaixona por uma jovem morta de quem ele tirou o último retrato. Trata-se, dessa vez, de um filme essencialmente hitchcockiano, de cara pelo trabalho insistente em cima do plano subjetivo – se em Singularidades havia a visão através da janela, aqui isso é multiplicado em diversos planos sobre-enquadrados por binóculos e objetivas fotográficas. São imagens que fazem parte do repertório do espectador dos anos 50, mas que hoje em dia estão praticamente extintas, e ao empregá-las, Manoel de Oliveira as atualiza de uma maneira impressionante, lançando mão de efeitos digitais que evidenciam a astúcia do cineasta ao servir-se da tecnologia na justa medida, sem ignorar o passado. Um filme hitchcockiano, dizemos, também pela excelência no tratamento do espaço. Isso porque não existe em O Estranho Caso de Angélica um único quadro que não pareça ter sido pensado minuciosamente em função do cenário e de suas linhas de força, e Manoel de Oliveira segue sendo um dos únicos diretores de nosso tempo que realmente sabe o que é filmar uma porta, uma janela, capaz de ligar seus personagens a um chão. É devido a essa preocupação em dotar o filme da matéria de que é feita que todo o seu aspecto de fábula nos parece tão intrigante, e as imagens delirantes melièsianas que surgem do nada tornam essa nova obra de Manoel de Oliveira um dos objetos mais estranhos do cinema dos últimos tempos. Mas isso não é muito diferente do que ocorre toda vez que o diretor lança um novo filme. Ainda bem.

Alice Furtado

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Uma cena em especial surpreende quem assiste a O Estranho Caso de Angélica: aquela em que Isaac e Angélica, a garota morta que é objeto de seu fascínio, saem voando pelos ares, seguindo o curso de um rio. A cena é filmada em preto e branco, e na verdade é um sonho, mas de qualquer jeito diz bastante sobre o que é o filme de Oliveira. Uma narrativa decomposta entre vida, morte e delírio, que se abre, vazada, por cada um desses termos. Oliveira não filma espíritos como quem filma a matéria, o mundo, como é o caso da própria cena em questão, um sonho desconectado em textura e forma (um travelling lateral com os dois dispostos horizontalmente) do resto do filme – um outro mundo.

Isaac (Ricardo Trêpa) é um fotógrafo interessado pela matéria. Ele fotografa coisas como burros puxadores de carroça, e sua obsessão mais recente são os trabalhadores de uma lavoura. Ao mesmo tempo, um certo poema sobre atingir um “espaço absoluto” não lhe sai da cabeça. A foto que lhe apresenta a Angélica muda a sua vida, joga-o para o alto, de cabeça para baixo. Enquanto isso, na pensão, as pessoas ao lado seguem conversando sobre a crise econômica, e, assim, da crise à física (ciência da matéria). E o filme é uma articulação desses espaços, desses pontos-de-vista, idéias e imagens heterogêneas. É um filme livre e aberto, muito em parte por aquilo que tem de lúdico, e que Oliveira sabe aproveitar muito bem.

No mais, é um filme que tem bastante em comum com o anterior de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loura. Duas histórias de amor, de personagens atraídos por uma imagem impossível – que os levarão fatalmente ao engano ou à morte. E um mesmo cinema que parece voltado sempre para si mesmo, que usa esse amor pela imagem de seus personagens para tematizar o cenário, a matéria e a luz. A fotografia, como a mise en scène, é o lugar do milagre (ressuscitar os mortos, ou unir duas almas apaixonadas).

Calac Nogueira

Maio de 2010