O Estranho Caso de Angélica, Manoel de Oliveira, Portugal/Espanha/França/Brasil, 2010
(UN CERTAIN REGARD)
Quanto mais longe Manoel de Oliveira nos faz retornar no
passado do cinema, quanto mais ele insiste em uma simplicidade fabular que
remete à saudável ingenuidade dos primeiros filmes, mais evidente fica sua
modernidade face às caretices formais e narrativas que contaminam boa parte do
cinema de hoje. Após o belo Singularidades uma Rapariga Loura, o
realizador português retorna com mais uma história de amor, novamente situada
num Portugal um tanto atemporal, onde o vestuário, o cenário e a
ritualística da primeira metade do século XX coexistem com os mais modernos
modelos de carro e com os ecos da crise econômica dos últimos anos.
Com um argumento não muito distante de A Fronteira da Alvorada (não por acaso, provavelmente o filme mais “direto ao ponto” de Philippe
Garrel), O Estranho Caso de Angélica conta a história de um fotógrafo
que se apaixona por uma jovem morta de quem ele tirou o último retrato.
Trata-se, dessa vez, de um filme essencialmente hitchcockiano, de cara pelo
trabalho insistente em cima do plano subjetivo – se em Singularidades havia a visão através da janela, aqui isso é multiplicado em diversos planos sobre-enquadrados
por binóculos e objetivas fotográficas. São imagens que fazem parte do
repertório do espectador dos anos 50, mas que hoje em dia estão praticamente
extintas, e ao empregá-las, Manoel de Oliveira as atualiza de uma maneira
impressionante, lançando mão de efeitos digitais que evidenciam a astúcia do
cineasta ao servir-se da tecnologia na justa medida, sem ignorar o passado. Um
filme hitchcockiano, dizemos, também pela excelência no tratamento do
espaço. Isso porque não existe em O Estranho Caso de Angélica um único
quadro que não pareça ter sido pensado minuciosamente em função do cenário e
de suas linhas de força, e Manoel de Oliveira segue sendo um dos únicos
diretores de nosso tempo que realmente sabe o que é filmar uma porta, uma
janela, capaz de ligar seus personagens a um chão. É devido a essa preocupação
em dotar o filme da matéria de que é feita que todo o seu aspecto de fábula nos
parece tão intrigante, e as imagens delirantes melièsianas que surgem do nada
tornam essa nova obra de Manoel de Oliveira um dos objetos mais estranhos do
cinema dos últimos tempos. Mas isso não é muito diferente do que ocorre toda
vez que o diretor lança um novo filme. Ainda bem.
Alice Furtado
***
Uma cena em especial surpreende quem assiste a O Estranho
Caso de Angélica: aquela em que Isaac e Angélica, a garota morta que é
objeto de seu fascínio, saem voando pelos ares, seguindo o curso de um rio. A
cena é filmada em preto e branco, e na verdade é um sonho, mas de qualquer
jeito diz bastante sobre o que é o filme de Oliveira. Uma narrativa decomposta
entre vida, morte e delírio, que se abre, vazada, por cada um desses termos.
Oliveira não filma espíritos como quem filma a matéria, o mundo, como é o caso
da própria cena em questão, um sonho desconectado em textura e forma (um travelling lateral com os dois dispostos horizontalmente) do resto do filme – um outro
mundo.
Isaac (Ricardo Trêpa) é um fotógrafo interessado pela
matéria. Ele fotografa coisas como burros puxadores de carroça, e sua obsessão
mais recente são os trabalhadores de uma lavoura. Ao mesmo tempo, um certo
poema sobre atingir um “espaço absoluto” não lhe sai da cabeça. A foto que lhe
apresenta a Angélica muda a sua vida, joga-o para o alto, de cabeça para baixo.
Enquanto isso, na pensão, as pessoas ao lado seguem conversando sobre a crise
econômica, e, assim, da crise à física (ciência da matéria). E o filme é uma
articulação desses espaços, desses pontos-de-vista, idéias e imagens
heterogêneas. É um filme livre e aberto, muito em parte por aquilo que tem de
lúdico, e que Oliveira sabe aproveitar muito bem.
No mais, é um filme que tem bastante em comum com o anterior
de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loura. Duas histórias de
amor, de personagens atraídos por uma imagem impossível – que os levarão
fatalmente ao engano ou à morte. E um mesmo cinema que parece voltado sempre
para si mesmo, que usa esse amor pela imagem de seus personagens para tematizar
o cenário, a matéria e a luz. A fotografia, como a mise en scène, é o
lugar do milagre (ressuscitar os mortos, ou unir duas almas apaixonadas).
Calac Nogueira
Maio de 2010
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