1. O homem. Provou que Deus não existe. Conquistou uma bela
mulher diversas vezes na mesma noite de 1914. Ouviu os alaridos da guerra e
saiu no terraço nu, em uma noite fria. Inflou o peito, olhou altivo para o
horizonte, vibrou com os acontecimentos históricos. Homem talhado para os
grandes feitos, para pisar nos fracos e derrotar os fortes, para dimensões
dantescas. Esquece suas palavras em nome de um poder maior. Alia-se à igreja
católica. Seu nome é Benito Mussolini, mas poderia ser Berlusconi, ou qualquer
outro tirano. Cruel e carismático, ocupa a primeira metade do filme e relega
todos os outros personagens a uma posição inferior à de coadjuvante, com uma
única exceção.
2. A mulher. Apaixonada, olhos que brilham de empolgação e
prazer. Foi amada diversas vezes na noite em que eclodiu a I Guerra Mundial.
Vendeu suas posses para tornar possível o sonho do amado. Teve um filho com
ele. Permitiu que começasse um império a partir de um jornal. Foi renegada,
internada em um hospício. É a Itália, violentada pela ascensão do fascismo? Ou
é apenas uma mulher apaixonada, caída em desgraça por amar o homem errado? Não
seria ela uma mulher firme e terrena demais para servir a parábolas? Seu nome é
Ida Dalser. Ela domina totalmente a segunda metade do filme, mais poética,
próxima da pieguice em alguns momentos, mas incrivelmente sincera e tocante.
3. Dois filmes brilhantes e bem diferentes reunidos em uma única peça. Um
acompanha Benito, o homem pronto para a marcha direta e incondicional à
conquista e à morte. Outro é fiel a Ida, a seu sofrimento, à vida que foi
forçada a levar em condições terríveis. O primeiro é ligeiro, explora os
acontecimentos históricos com desenvoltura e determinação, respeita tão somente
a fúria de seu protagonista. O segundo é lento, degradante, propositadamente
flácido, repousa sobre tempos mortos e impotência humana. Esses dois filmes são
complementares, mas o de Ida é facilmente – e injustiçadamente – identificado
como patinho feio, melodrama obeso e redundante. Mas é nele que se encontram os
três momentos mais belos de Vincere:
a) Uma mesa é esvaziada para a chegada de Ida. No plano, só vemos o móvel e
algumas mãos tirando o que havia em cima dele. Deixam apenas uma caveira,
virada para onde ela sentará. Esta última entra em cena afastando a caveira,
que já não aparece mais na mesa quando surge o contracampo, e vemos que atrás
dessa mesa estava uma junta com vários médicos para avaliá-la.
b) A irmã que trabalha no hospital psiquiátrico lê a carta enviada pelo filho
de Ida. Pensa em consolá-la em seu choro, mas recua depois de alguns segundos,
reencontrando o quadro que havia permanecido fiel à pequena janela que mostra
uma chuva inclemente, e tirando o hábito que servirá para a fuga de Ida. Esse
movimento de hesitação da irmã é respeitado pela câmera de Bellocchio, em uma
das encenações mais inusitadas do cinema recente, digna de Manoel de Oliveira
(vide, por exemplo, O Quinto Império, e a câmera que resiste à saída de
quadro dos dois bobos da corte).
c) Imagens de um filme italiano antigo, de propaganda ou de cinejornal, mostram
algumas mães amamentando seus filhos, enquanto as letras garrafais insistem:
"rumo ao povo... rumo ao povo".
São três cenas raramente vistas no cinema contemporâneo. Momentos de uma riqueza
profunda, frutos da nobre arte de respeitar o ator com a solidão de seu
personagem, o tempo de uma dúvida e o avanço histórico e social por meio da
propaganda. Nessas três sequências essenciais para se entender o cinema de
Bellocchio, testemunhamos sua adesão incondicional a Ida Dalser e à força de
sua verdade, sua compreensão com a dúvida de uma representante daquilo que ele
condena – a igreja católica, e a ironia na demonstração de sua posição
política.
4. Há um pouco de tudo neste filme que já inicia vulnerável a todos os tipos de
ataques, e se encerra sob o espectro do melodrama, à moda de Luigi Comencini (especialmente
o de Quando o Amor é Cruel – dois filhos que sentem a distância do pai e
a fragilidade da mãe) ou Dino Risi. Slogans aparecem em letras garrafais
invadindo a tela, planos poéticos são embelezados por uma música
grandiloquente, personagens desaparecem (o mais interessante deles é o médico
que acredita em Ida), uma primeira metade que parece atropelar qualquer
intimismo com a roda da história, uma segunda metade que renega a primeira e o
homem que havia representado nela. Enfim, temos um caso de esquizofrenia,
filmada com um brilhantismo clássico inabalável pelo teor panfletário de seus
gritos. Esses gritos chegam primeiramente pela máquina fascista, embrionária no
homem que deseja a conquista do mundo. Em seguida, na já desprezada e mal vista
segunda parte, pela necessidade de se afirmar uma verdade, de não se render às
maquinações do totalitarismo que anula o indivíduo, incluindo aí o próprio
tirano, transformado em imagem midiática, sem coração, sem alma. Com Ida
Dalser, um outro tipo de heroísmo substitui aquele dos livros de história. É o
heroísmo que reside no caráter, a honradez de não se dobrar a algo em que não
se acredita, mesmo que para isso seja necessário aguentar a privação e o
sofrimento. Que o diretor tenha extraído a melhor interpretação da carreira da
bela Giovanna Mezzogiorno, que tenha submetido sua direção ao semblante ora
mumificado, ora vivaz de Ida, que tenha sabido se adaptar às exigências dessa
alternância perigosa de registros e tons sem prejudicar uma unidade tão mais
perceptível quanto mais nos envolvemos com sua protagonista, nada disso
surpreende. Que tenha feito um dos filmes mais diretos e sinceros, marcantes e
incisivos, dos últimos anos, é de se saudar nestes tempos de contenção e
cautela excessivas.
Bellocchio acredita que para narrar essa história era necessário ter a mão
forte, sem sutilezas, sem entrelinhas. Somente o grito do coração. Com grandes letras
formando slogans e sujando a tela, mesmas armas usadas pelo fascismo. Armas
apaixonadas, que podem resistir à frieza das máquinas.
No cinema, não existe a obrigação de ser sutil. Mas às vezes é preciso ser
VIRIL.
Sérgio Alpendre
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