Nesta
volta de Woody
Allen a Nova Iorque após o
“exílio”
europeu, o personagem que começa o filme nos apresentando
sua
história como num número de stand up
comedy é
Boris (Larry David), um ex-físico teórico
especializado
em mecânica quântica que certa vez quase ganhou o
Prêmio
Nobel. Ele sobrevive agora dando aulas de xadrez para
crianças
e não hesita em xingá-las de burras e imbecis
quando
fazem uma jogada que ele considera estúpida. Cheio de
neuroses, mau humor e pontos de vista intransigentes, Boris
não
espera mais grande coisa da vida. Só quer ficar distante das
relações amorosas e resmungar para os amigos (e
para
nós espectadores) sua visão de mundo desencantada.
Até
que surge
Melody (Evan Rachel Wood), uma ingênua menina do
Mississípi
(a cidadezinha de onde ela vem se chama Eden, simbolizando o duplo
sentido de inocência e pecado que a personagem carrega) que
Boris encontra na imunda calçada em frente à sua
casa e
a quem acaba dando abrigo. Os dias se passam e ela vai ficando.
Melody começa a assimilar – meio tortamente
–
algumas das teorias de Boris. Uma atração se cria
entre
os dois opostos. Eles se casam. As circunstâncias empurram
Boris, o misantropo resmungão, de volta para o mundo das
relações humanas, onde reina o
princípio da
incerteza e não há constantes, apenas
variáveis.
A
trama ganha mais
atrativos cômicos quando Marietta (Patricia Clarkson), a
mãe
de Melody, um belo dia aparece do nada, bate na porta ao ritmo da
quinta sinfonia de Beethoven (a cena é puro teatro farsesco)
e
invade o filme para proporcionar reviravoltas. Depois, mais para o
final, será a vez do pai aparecer em semelhante golpe
teatral.
Marietta instala-se em Nova Iorque e se descobre uma
fotógrafa
talentosa (conforme ocorrera com a personagem de Scarlett Johansson
em Barcelona no filme
anterior).
Allen tem especial apreço em mostrar –
não sem
ironia – esses personagens de talento naïf,
dos
quais o mais marcante permanece sendo o criminoso bronco que se
revela um gênio da dramaturgia em Tiros na Broadway.
Em
Tudo Pode Dar Certo, um intelectual amigo de Boris
elogia a
“beleza primitiva” que vê numas fotos
domésticas
que Marietta fizera despretensiosamente com uma pequena Kodak
automática. O cinema de Woody Allen sempre foi um cinema
intelectual que debocha do intelectualismo. Aqui ele retoma
aquele traço caricatural com o qual costuma representar os
círculos artístico-intelectuais nova-iorquinos.
O
amigo de Boris que
elogiara as fotografias de Marietta a apresenta para um dono de
galeria de arte e os três se tornam amantes. A ex-religiosa
fanática, ex-membro do clube do rifle, típica
representante da América WASP, é agora
fotógrafa
artística e dorme com dois homens ao mesmo tempo. O pai de
Melody também se transformará, desrecalcando o
gay que
existia dentro dele. A família – enquanto
núcleo
fechado – se desfaz para que surja uma outra idéia
de
aproximação comunitária, celebrada na
cena
final: mais hedonista, plural, mais obra do acaso que da
convenção.
Talvez
pelo estilo mais
solto e digressivo adotado por Allen, Tudo Pode Dar Certo
não
possui aquela concisão de mise en scène que
ele levou ao ponto máximo em Match
Point
e O Sonho de Cassandra.
Lá o elemento trágico impunha uma linha reta que
precisava ser seguida sem desvios, até o final. Aqui o lado
cômico fala mais alto e o papel do acaso é somar
coisas,
acrescentar episódios auxiliares, ao invés de
afunilar
o filme rumo a seu fim incontornável. Há,
contudo, um
momento de extrema concisão que gera estranhamento pela
maneira abrupta com que se insere na cadeia narrativa: a cena em que
Boris tenta o suicídio pela segunda vez, um único
plano
seco e inesperado, a meio caminho entre a gag de horror e o arremedo
burlesco.
Os
personagens de Woody
Allen, tanto aqueles que ele interpreta como aqueles a que empresta
algo de sua personalidade (como é o caso aqui),
são
usinas de perturbações neuróticas e
ressentimentos. Na cena em que Melody comunica a Boris que
irá
deixá-lo, ela explica que viver ao lado dele é
como não
estar “participando do mundo”. A neurose e o
ressentimento formam mesmo um escudo que isola a pessoa do mundo, e
que inevitavelmente contamina quem está perto. Melody quer
sair desse isolamento. Boris, no fundo, também quer, embora
reaja pela negação. Cabe ao mundo, em sua
ordenação
desordenada, ensinar-lhe o caminho. Equilibrada pelo frescor jovial
trazido por Melody, a visão cáustica de Boris
cede
lugar a uma leveza, uma aceitação da ordem das
coisas
(expressa em seu bordão: “whatever
works”). O
mundo não muda, continuará sempre aquele mesmo
mundo
que ele havia condenado no começo do filme. Mas as pessoas
podem mudar suas relações com o mundo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Maio de 2010
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